'Por que a visita de um ministro à favela incomoda?', questiona presidente de ONG da Maré
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - A fundadora e presidente da ONG Redes da Maré, Eliana Sousa, diz que a sociedade naturalizou a ausência do Estado nas favelas. A visita ao Complexo da Maré de Flávio Dino, titular do Ministério da Justiça e Segurança Pública e primeiro ministro a visitar a ONG criada há 16 anos no Rio de Janeiro, teria exposto esse pensamento.
"A segurança pública está entre os direitos humanos, assim como a saúde, a educação. Mas é um direito que ainda não está estabelecido para o morador de favela e periferia. Acho que toda a polêmica que a gente tem hoje em torno da presença de um ministro em uma favela está justamente nisso", disse Eliana à reportagem.
A entrevista foi concedida em uma das sedes da ONG, no Galpão Ritma, localizado na entrada principal da Nova Holanda, uma das 16 favelas que integram o Complexo da Maré, na zona norte do Rio. Para entrar, a reportagem andou cerca de cinco metros a partir da avenida Brasil, uma das principais vias expressas da cidade.
O mesmo trajeto foi feito por Fávio Dino no último dia 13. O fato de a visita do ministro não mobilizar um aparato robusto de policiais -o esquema de segurança adotado foi o de praxe- fez com que deputados bolsonaristas insinuassem uma possível ligação de Dino com o crime organizado. Esse foi um dos motivos por que o ministro foi convocado à CCJ (Comissão de Constituição de Justiça), na terça (28).
"É absurdo naturalizar essa fala de que a polícia só pode entrar [na favela] com carro blindado, com armamento muito forte. Assim você está dizendo que todo mundo, os 140 mil moradores, são perigosos. E não um grupo específico, de talvez 500 pessoas, que fica em determinados locais, envolvido com atividades ilícitas, com armas", afirma.
Eliana ressalta que no Complexo da Maré há 50 escolas, nove Clínicas da Família, 4.000 empreendimentos econômicos e centro de artes. "Beira a ignorância pensar que na favela existe um domínio [do crime] a esse ponto, que não permite que as pessoas entrem aqui quando queiram", avalia.
Indagada se chegou a avisar o crime organizado sobre a visita do ministro, Eliana respondeu que não.
"Não avisei ninguém, não existe esse contato. Também não avisei ninguém que você viria aqui. É óbvio que, se gente começar a entrar [para o interior da favela], vamos passar por determinados pontos de venda de drogas no varejo, em que as pessoas podem estar armadas. Por isso o lançamento do boletim [7º boletim Direito à Segurança Pública] foi aqui neste espaço, ao lado da avenida Brasil", explicou.
Eliana conta que mudou-se para a Maré com seis anos de idade. Em 1984, aos 22, cursando faculdade de Letras na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), tornou-se a mais jovem presidente de uma associação de moradores do complexo e passou a negociar melhorias nas favelas junto ao governo e a entidades privadas.
Formou-se doutora em serviço social e mestre em educação pela PUC-Rio, e obteve o título de doutora honoris causa pela Queen Mary University de Londres. Professora aposentada da UFRJ, ela também lecionou por três anos no Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo), engajada na Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência. Atualmente é professora do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa).
A passagem de presidente de associação para criadora da ONG Redes da Maré ocorreu após a fundação de um curso pré-universitário. "Quando a gente fala da Maré, a gente está falando de 16 favelas diferentes, sempre falo em Marés. Quando criamos a Redes, tinha essa ideia de justamente ativar diferentes redes, peculiaridades. Por exemplo, cada uma das favelas tem um presidente de associação. A Redes respeita essa diversidade", disse.
A Redes da Maré hoje auxilia 6.007 alunos em cinco eixos: produção de conhecimento, com o curso pré-vestibular, por exemplo; arte, com uma escola de dança e o Centro de Artes da Maré; direitos urbanos e socioambientais, voltado para políticas que promovam a qualidade de vida, como pavimentação; saúde; e direito à segurança pública e acesso à Justiça.
Eliana destaca que o complexo de favelas está localizado entre as Linhas Amarela e Vermelha e próximo da avenida Brasil. "Muito gás carbônico é jogado aqui, faz com que a gente esteja respirando o pior ar da cidade do Rio. E não temos uma arborização adequada", disse.
Já na área da saúde, foi através do trabalho da ONG em parceria com a Fiocruz que os moradores da Maré foram vacinados contra a Covid-19. "Em quatro dias, vacinamos 34 mil pessoas."
A visita do ministro ocorreu por ocasião do lançamento do 7º boletim Direito à Segurança Pública, com dados de 2022. No documento, a Redes da Maré relata que no período foram registradas 39 mortes por armas de fogo no complexo, 27 delas em contexto de operações policiais.
Além disso, 62% das operações, segundo o boletim, ocorreram perto de escolas e creches, e 67% foram realizadas nas proximidades de unidades de saúde. Foram, ao todo, 15 dias de aulas e 19 dias de atendimentos em saúde suspensos por causa das operações policiais.
"O morador da Maré nunca teve essa experiência de ter um profissional da polícia que se dirija a ele de uma maneira respeitosa, como a gente vê em outros bairros da cidade. A experiência de quem é morador é a de que a polícia está presente somente a partir dos momentos em que há operações policiais, que são catastróficas", disse. "O boletim entregue ao ministro mostra uma letalidade muito alta, com presença esporádica da polícia", acrescentou.
Na visita, Flávio Dino também pode conhecer obras de artistas da Maré, como uma exposição de quadros sobre ações policiais na favela.
As atividades da ONG têm apoio financeiro da Ford Foundation e Open Society Foundations, do filantropo George Soros. Nas redes sociais, alguns criticaram os financiamentos.
"Mais uma vez a gente vê criminalizada a nossa honestidade, de [questionarem] por que essas instituições estariam apoiando projetos dentro da favela da Maré. Acho que a mesma lógica de criminalização dos moradores de favela existe em relação a essas organizações: uma criminalização sobre alguma intenção que não seja apoiar projetos que possam materializar direitos para essa população", disse.
Eliana afirma que durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não houve melhorias no complexo. Indagada sobre em quais tipos de políticas o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve investir, ela foi direta: "No enfrentamento das violações de direitos. Sem isso não iremos evoluir como uma democracia plena."