Usando rede de pulsares como detector, grupo abre nova janela para estudo do cosmos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O universo é permeado por ondas gravitacionais sutis e ultralongas, com cristas e vales separados por anos-luz de distância, vindas de todas as direções, produzindo um pano de fundo para o cosmos cuja observação pode revelar segredos de alguns dos mais colossais objetos já surgidos nele e talvez até mesmo trazer informações sobre seu nascimento, o Big Bang.
A primeira detecção conclusiva desse chamado fundo de ondas gravitacionais foi anunciada nesta quinta-feira (29) em painel organizado pela colaboração americano-canadense NanoGrav, com apoio da NSF (Fundação Nacional de Ciências dos EUA). Grupos independentes na Austrália, na China, na Europa e na Índia também reportaram seus resultados, corroborando a descoberta.
Os dados, fruto de 15 anos de observações, foram apresentados em um conjunto de oito artigos científicos publicados simultaneamente no periódico Astrophysical Journal Letters e representam um achado muito diferente daquele feito por detectores de ondas gravitacionais como o americano Ligo (sigla em inglês para Observatório de Ondas Gravitacionais de Interferometria a Laser), responsável pela primeira detecção desse fenômeno, em 2015.
Ondas gravitacionais são uma das muitas predições da teoria da relatividade geral, formulada por Albert Einstein em 1915. Ao sugerir que a força da gravidade era uma distorção no espaço (e no tempo), a teoria indicava que objetos com massa em deslocamento pelo universo produziriam marolas no próprio vazio, gerando flutuações e encurtando e alongando distâncias periodicamente -mais ou menos como pedras atiradas à superfície de um lago que, ao tocar a água, geravam ondas concêntricas a partir do ponto de impacto.
O Ligo foi construído para detectar essas pequenas flutuações ao disparar um laser por dois braços perpendiculares de 4 km. Conforme ondas gravitacionais passassem pela Terra (e pelo detector), gerando um rápido encolhimento e esticamento dos braços (inferior ao tamanho de um átomo), isso causaria um desalinhamento detectável entre os feixes de laser, denunciando a passagem da marola por aquela região do espaço-tempo.
Com seu tamanho, o Ligo (e outros detectores similares, como o Virgo) é sensível a ondas gravitacionais com comprimentos relativamente curtos (entre 43 km e 10 mil km), que são produzidas sobretudo quando dois objetos de alta massa (por exemplo, um par de buracos negros de porte estelar) estão espiralando em alta velocidade um na direção do outro, até finalmente se fundirem em um só, emitindo grande quantidade de energia na forma das marolas pelo espaço-tempo.
Para detectar sinais de ondas gravitacionais com comprimento de onda muito maior, a colaboração NanoGrav (acrônimo para Observatório Norte-Americano de Nanohertz para Ondas Gravitacionais) precisava de um detector que tivesse tamanho comparável ao da nossa galáxia, a Via Láctea.
Impossível construir algo assim, claro, mas felizmente a natureza fornece um recurso valiosíssimo para pôr essa ideia em prática: os pulsares de milissegundos. Eles são os restos mortais de estrelas de alta massa que explodiram como supernovas, deixando para trás um caroço de matéria ultracomprimido -que por pouco não colapsou completamente para virar um buraco negro.
Esses pulsares giram de forma extremamente rápida, emitindo pulsos periódicos de rádio na direção da Terra a cada rotação (por isso ganharam esse nome, por sinal). Com isso, são, por assim dizer, os relógios mais precisos que podemos encontrar no espaço.
Ocorre que, ao serem banhados por ondas gravitacionais, esses pulsos podem acabar sendo ligeiramente atrasados ou adiantados, em razão do estica-e-puxa do espaço-tempo. E foi isso que os pesquisadores do NanoGrav buscaram observar ao colher dados de dezenas de pulsares com grandes conjuntos de radiotelescópios, como o Observatório de Arecibo, em Porto Rico, o Telescópio de Green Bank, na Virgínia Ocidental, e o VLA (sigla para Very Large Array), no Novo México.
Iniciado com um esforço modesto de um grupo pequeno em 2004, o projeto precisou acumular 15 anos de observações antes que os pesquisadores fossem capazes de afirmar que o padrão de pulsação de 67 pulsares espalhados por dezenas de milhares de anos-luz indica a presença de um fundo de ondas gravitacionais.
"O grande número de pulsares usados na análise do NanoGrav nos permitiu ver o que acreditamos serem os primeiros sinais do padrão de correlação predito pela relatividade geral", diz Xavier Siemens, pesquisador da Universidade Estadual do Oregon e codiretor da colaboração.
De acordo com as estimativas do grupo, a chance de essa correlação ser uma coincidência, um falso negativo, está entre uma em mil e uma em 10 mil, o que dá aos pesquisadores bastante confiança no achado.
"O resultado revela que a técnica funciona para detectar ondas gravitacionais e existe um fundo de ondas gravitacionais detectável na faixa de frequências de nanohertz", disse à Folha Odylio Aguiar, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) especialista em ondas gravitacionais não envolvido no trabalho.
Trata-se de uma frequência muito baixa, que equivale a um comprimento longuíssimo, com distância de vários anos-luz entre cada crista da onda.
A ORIGEM DO SINAL
De onde estão vindo as ondas que compõem esse fundo? Os pesquisadores têm um candidato favorito: buracos negros supermassivos binários.
Sabemos que cada galáxia tem em seu interior um buraco negro gigante, com massa equivalente a milhões ou bilhões de sóis. E sabemos que galáxias costumam colidir umas com as outras, dando a oportunidade para que dois desses buracos negros supermassivos se encontrem e entrem em órbita um do outro.
Esse lento espiralar (alguns milhões de anos antes que se fundam e virem um só) seria capaz de produzir as ondas gravitacionais necessárias para gerar o padrão de variação observado nos pulsares.
E como deve haver binárias de buracos negros supermassivos para todo lado, o que foi detectado no momento seria a ação conjunta de todos eles, na forma desse fundo de ondas gravitacionais.
Contudo, os pesquisadores foram taxativos ao dizer que ainda não podem cravar que essa é de fato a origem do sinal. Há outros objetos hipotéticos presentes em teorias exóticas que seriam capazes de produzir o mesmo resultado. O caminho para dirimir essa dúvida é colher mais dados, com mais precisão. "Com a melhoria da sensibilidade, a origem desse fundo vai ser, provavelmente, determinada", diz Aguiar.