Bahia vive encruzilhada com guerra entre facções, chacinas e violência policial
SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) - "Eu quero pedir para aqueles que ficam mandando recados errados: respeitem a nossa Polícia Militar, o que vocês estão fazendo com a Polícia Militar é irresponsabilidade", disse o governador Jerônimo Rodrigues (PT), criticando uma reportagem que mostrou o avanço da letalidade policial na Bahia.
O recado foi dado na quinta-feira (17), véspera de um ato do movimento negro em apoio a mães que tiveram seus filhos mortos em ações policiais. Entre um evento e outro, a líder quilombola Bernadete Pacífico foi assassinada em um crime que causou comoção nacional.
A sequência dos fatos expôs a encruzilhada que enfrenta o governador no debate sobre segurança pública, principal gargalo dos 16 anos de gestões do PT na Bahia.
Tal qual um equilibrista, Jerônimo acena para os policiais, promete fechar o cerco ao crime, critica a imprensa e se diz o "governador dos direitos humanos". Tudo em meio a um turbilhão de críticas de adversários e de aliados.
O discurso oficial celebra queda nas mortes violentas, mas a Bahia enfrenta um de seus momentos mais graves na gestão da segurança, com o acirramento da guerra entre facções, chacinas e escalada da letalidade policial. O epicentro desta tempestade são as periferias das cidades, cujas famílias vivenciam a morte diária de uma legião de jovens negros e pobres.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam a Bahia como o estado com maior número absoluto de mortes violentas do Brasil desde 2019. Em 2022, o estado conseguiu reduzir em 5,9% o número de ocorrências, fechando o ano com 6.659 assassinatos.
O estado vive mudanças na dinâmica do tráfico de drogas que incluem alianças de criminosos com facções de atuação nacional, a interiorização da violência e uma política de segurança que fez escalar a letalidade policial.
"A Bahia não tem a hegemonia de um único grupo criminoso. Pelo contrário, há uma atuação difusa de várias organizações menores que acabam se conflitando", afirma José Alves Bezerra Junior, diretor do Departamento Especializado na Investigação e Repressão ao Narcotráfico da Polícia Civil.
A disputa pelo tráfico de drogas ganhou novos contornos a partir do segundo semestre de 2020, quando foi selada uma aliança entre o Comando da Paz, grupo criminoso que surgiu na Bahia há cerca de 15 anos, com o Comando Vermelho, uma das maiores facções do país, que tem origem no Rio.
O principal rival do Comando da Paz é a facção BDM (Bonde do Maluco), que começou a construir pontes com a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital, com origem em São Paulo) e transformou a Ilha de Maré, região insular de Salvador, em seu principal bunker na capital baiana.
As alianças abriram novas rotas para a aquisição de drogas e armas no estado e acirraram a violência na disputa por territórios em bairros periféricos de Salvador e do interior, inclusive em municípios de pequeno porte.
O secretário de Segurança Pública da Bahia, Marcelo Werner, confirma diz que há um "clima de beligerância entre facções" criminosas no estado que demanda ações ostensivas de combate ao crime organizado.
Para enfrentá-las, defende mais investimento em segurança, maior integração e investigações orientadas pela inteligência. Por outro lado, critica o que chama de "permissividade das interpretações das leis", que colocam em liberdade pessoas detidas várias vezes pelo mesmo tipo de crime.
A Polícia Civil estima que cerca de 65% dos crimes violentos na Bahia têm ligação com o tráfico de drogas. Mas a maioria dos crimes não é elucidado: de acordo com levantamento do Instituto Sou da Paz, só 22% das mortes violentas registradas no estado em 2020 foram solucionadas.
Para tornar o cenário ainda mais complexo, as facções deixaram de atuar apenas no mercado de drogas, cometendo crimes que incluem roubos, sequestro relâmpago, golpes e extorsões.
Em comunidades de Salvador, criminosos passaram a cobrar uma espécie de pedágio a comerciantes que atuam em regiões conflagradas. No bairro de Cosme de Farias, facções passaram a controlar a venda de pacotes de internet.
Famílias que vivem em nos bairros periféricos enfrentam uma rotina de medo em meio a recorrentes tiroteios e mortes violentas. Desde o início do ano, ao menos 35 escolas municipais de Salvador suspenderam as aulas após episódios de violência.
Os tiroteios deixaram ao menos 11 crianças baleadas este ano na Grande Salvador, aponta o Instituto Fogo Cruzado. Duas morreram, incluindo um bebê morto na Praia de Tubarão neste domingo (20) e um menino de 10 anos que morreu em julho em meio a uma ação policial em Lauro de Freitas.
No início de agosto, 31 pessoas foram mortas em ações policiais no estado em uma semana. Os episódios tiveram visibilidade, mas o número é próximo à média semanal de mortes registradas como autos de resistência.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em números absolutos, a Bahia foi em 2022 o estado com mais mortes decorrentes de intervenção policial, com 1.464 ocorrências ?o que dá uma média de 28 casos por semana. Desde 2015, o número de mortes registradas como autos de resistência quadruplicou no estado.
Entre os casos está o de Jeferson Ramos Santos, 27, morto em 11 de julho após uma ação policial em Jequié (370 km de Salvador). Ele trabalhava com terraplanagem em Minas Gerais, mas tinha retornado à cidade natal. Foi morto com oito tiros no bairro Cachoeirinha, um dos mais violentos da cidade.
Professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), Samuel Vida afirma o governo baiano adota a tática do confronto como resposta à sensação de insegurança.
"É uma política de segurança que aposta na letalidade, na falácia da guerra às drogas e que criminaliza as comunidades negras mais vulneráveis, inclusive com a violação sistemática de direitos com o aval do Estado", avalia.
O secretário de Segurança da Bahia diz que as forças de segurança atuam dentro da legalidade e qualquer conduta à margem da lei será investigada. Também destaca que o governo está em processo de licitação para a compra de câmeras corporais para as tropas.
Ainda segundo ele, cerca de 200 viaturas foram atingidas por tiros em meio a operações e 108 policiais militares ficaram feridos após ataques de organizações criminosas desde 2021.
Em nota, o Ministério Público estadual disse que vê preocupação o aumento da letalidade policial e que apura os casos de mortes causadas pelas forças de segurança.
Mães que perderam seus filhos em ações policiais pedem celeridade nas investigações. Joselita da Silva Menezes perdeu o filho Michael, 11, em meio a uma ação policial no bairro Vale das Pedrinhas em 2020. Ele estava na rua, comendo um cachorro-quente, quando foi atingido por um disparo.
"A polícia sempre fala em troca de tiros e o Estado acoberta o sol com a peneira. Sei que a justiça de Deus não falha, mas vou lutar para que a morte do meu filho não fique impune", afirma.