Novas espécies de lagartos homenageiam Bruno Pereira, Dorothy Stang e etnias indígenas

Por ANA BOTTALLO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando se deparou com a quantidade de lagartos do gênero Iphisa para análise em sua pesquisa de mestrado no programa de pós-graduação em biologia animal da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), a bióloga Anna Mello sabia que o desafio pela frente seria grande.

Mello tinha ingressado no programa como parte do laboratório de Pedro Nunes, professor na mesma universidade, com o objetivo de fazer a revisão taxonômica do gênero, pertencente à família Gymnophthalmidae, que inclui mais de 280 espécies com distribuição nas Américas.

Até então, só era conhecida uma espécie do gênero, Iphisa elegans, encontrada em toda a amazônia brasileira até o Escudo das Guianas, e uma possível subespécie (classificação usada para distinguir uma população que apresenta algumas características diferentes, mas não o suficiente para ser uma espécie nova), I. elegans soinii, no Peru.

"Foram 721 espécimes [nome dado ao indivíduo que é preservado em coleções científicas]. Eu sabia que esse ia ser o principal obstáculo, mas com esse número foi possível trazer robustez ao trabalho", disse.

A análise dos lagartos revelou uma diversidade oculta do gênero na América do Sul. Com a conclusão do estudo, Mello e colegas descreveram cinco novas espécies e elevaram a subespécie para nível específico.

Para as novas espécies, os autores escolheram figuras importantes para a conservação da floresta:

Iphisa brunopereira, em homenagem ao indigenista Bruno Pereira, assassinado em junho de 2022;

I. dorothy, em homenagem a Dorothy Stang, missionária americana e ativista na região do Xingu em defesa dos direitos dos trabalhadores rurais;

I. surui, em homenagem a Neidinha Suruí e a etnia Paiter-Suruí;

I. munduruku, homenageando Alessandra Korap Munduruku e a etnia Munduruku;

I. soinii, que faz referência à etnia suini, na Amazônia peruana; e

I. pellegrino, cujo nome é em homenagem à pesquisadora brasileira Kátia Pellegrino, especialista no grupo.

O artigo que detalha a revisão taxonômica do grupo foi publicado no periódico Zoological Journal of the Linnean Society. Assinam o artigo, além de Mello e Nunes, Renato Recoder e Miguel Trefaut Rodrigues, do Departamento de Zoologia da USP, e Antoine Fouquet, pesquisador do CNRS (principal órgão de fomento à pesquisa francês) e professor na Universidade Paul Sabatier, em Toulouse (França).

Os lagartos do gênero Iphisa são pequenos, com o comprimento máximo de 4 cm da ponta do focinho até a ponta da cauda. Eles vivem principalmente no folhiço (vegetação que recobre o chão das florestas) e se alimentam de pequenos invertebrados. Vendo de fora, é muito difícil diferenciar as espécies, já que elas são muito parecidas e o padrão de coloração é semelhante.

Segundo Nunes, que vinha há uma década estudando o grupo, uma análise de 2012 já apontava para a existência das chamadas "espécies crípticas" no grupo, que são aquelas cujas características morfológicas ou informações obtidas por análise genética indicam linhagens distintas, mas não havia a classificação definitiva como novas espécies.

"Já tínhamos observado essa variação, principalmente com a análise molecular [de DNA], mas à época eu não tinha estudado um número suficiente de indivíduos, inclusive muitos dos espécimes-tipo [como são chamados os espécimes que descrevem a espécie]. Então esse estudo foi uma continuação desse trabalho de pelo menos 11 anos atrás", afirmou.

A análise dos exemplares em coleções foi importante para, por exemplo, observar diferenças significativas na morfologia externa (como na contagem de escamas) e internas (como do hemipênis, os órgãos sexuais dos lagartos). Esses órgãos são divididos e possuem uma série de espinhos, sulcos e estrias recobrindo o corpo. Tais diferenças ajudam os pesquisadores a compreender a história evolutiva dos clados, uma vez que espécies distintas, em geral, não apresentam a mesma morfologia hemipeniana.

Além disso, os pesquisadores fizeram a análise molecular de 116 amostras dos lagartos para avaliar as relações de parentesco entre as espécies.

"A gente vê que animais com genitália muito diferentes não compartilham a mesma sequência [de DNA], ou seja, são populações claramente distintas, e aí veio a pergunta, o que ocorreu primeiro, a mudança no hemipênis, levando à separação reprodutiva entre as espécies, ou foi um isolamento por exemplo geográfico e que levou às mudanças? Isso ainda estamos buscando uma resposta", disse Nunes.

Se antes os lagartos do gênero Iphisa eram considerados com uma distribuição ampla na amazônia, já que ocorriam em quase todos os rios da bacia, a nova revisão das espécies mostra agora uma distribuição muito mais restrita de alguns dos táxons, o que pode levar a uma maior preocupação na conservação.

A espécie nomeada em homenagem a Bruno Pereira, por exemplo, está restrita a uma pequena área no oeste do estado do Amazonas. "A I. brunopereira está isolada em uma região, mas é importante ressaltar que ainda temos muitas lacunas na distribuição, que é provavelmente devido a um viés de coleta, e muito do que conhecemos pode ainda ser ampliado com novos estudos", afirmou o pesquisador.

Segundo Mello, uma proposta inicial dos nomes das novas espécies levava em consideração essas diferenças geográficas, o que poderia, por exemplo, ajudar pesquisadores que estavam estudando o grupo. "Mas em meio ao cenário ambiental, social e político que estávamos vivendo no país, vimos a possibilidade de trazer essa pauta importante para um animal que é da amazônia", disse. "Além disso, no caso do Bruno e da Dorothy Stang, são pessoas que deram a vida defendendo a amazônia."

Para Miguel Trefaut Rodrigues, o trabalho destaca ainda a importância das coleções científicas para o conhecimento. "Elas carregam toda a informação, não só de como é a anatomia, a morfologia dos animais, mas também sobre o ambiente em que viveram. Elas precisam ser preservadas porque é a nossa história passada, presente e futura", disse.