De grupos de extermínio a narcomilicianos: em 73 anos, a evolução das milícias no Rio

Por BRUNA FANTTI

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - A milícia no Rio de Janeiro tem origem em grupos de extermínio formados por agentes de segurança e ex-policiais que começaram a operar no estado na metade do século passado. Apenas na década de 1980 é que esses grupos passaram a ter comando territorial de comunidades. A primeira foi Rio das Pedras, na zona oeste do Rio.

Nos anos 2000, esses bandos receberam o nome de milícias. Ainda em seu início, havia a ideia de que eles seriam um contraponto ao tráfico de drogas.

O combate a eles só ganhou destaque após uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Assembleia Legislativa do Rio, que mostrou os abusos e a longa lista de crimes cometidos pelas milícias.

CONFIRA O HISTÓRICO DAS MILÍCIAS NO RIO DE JANEIRO

1950 ? Grupos de extermínio são formados no Rio, então capital do país. O principal deles é o Grupo de Diligências Especiais, comandado pelo policial Milton Le Cocq.

1964 ? Após o assassinato de Le Cocq por pessoas ligadas ao jogo do bicho, a Escuderia Le Cocq é formada por 12 policiais. Entre eles está José Guilherme Godinho, o Sivuca, a quem é atribuído o slogan "bandido bom é bandido morto".

1967 - Sob intervenção, as polícias militares estaduais passaram a ser comandadas por oficiais do Exército e utilizadas para combater opositores da ditadura militar. É feita uma aliança entre integrantes do regime e do jogo do bicho, que se expande na cidade.

1969 - É formada a comunidade de Rio das Pedras, na zona oeste do Rio. A favela é criada a partir de dez famílias que tiveram seus terrenos desapropriados pelo governo.

1980 - Policiais chamados de polícia mineira ?o apelido fazia referência ao fato de os oficiais, em folga, "minerarem" dinheiro com o comércio local fazendo bicos de segurança? passam a controlar a Associação de Moradores de Rio das Pedras. Com monopólio da violência e assistencialismo, cobram taxas pela suposta segurança. Com o tempo, a taxa passa a ser obrigatória e há denúncias de abusos. Essa é considerada a primeira milícia do estado, consolidada na década seguinte.

2000 - Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, é eleito vereador, com base eleitoral de Campo Grande, bairro mais populoso. Segundo investigações, ele é mentor da Liga da Justiça, milícia do bairro que tem a marca do Batman como símbolo. Os acusados sempre negaram a participação nos crimes.

2004 - A milícia de Rio das Pedras ajuda com armas e homens a Liga da Justiça, que assume o controle de Campo Grande. Em troca, segundo um ex-miliciano ouvido pela reportagem, a Liga garantiu que a região seria reduto eleitoral da milícia da zona oeste.

2005 - O termo milícia é utilizado em reportagens no Jornal O Globo. Políticos passam a divergir sobre apoio aos grupos.

2008 - Equipe do Jornal O Dia é torturada na favela do Batan, zona oeste do Rio, ao se infiltrar para cobrir a atuação da milícia local. A CPI das Milícias é criada, na Alerj.

2010 - Para manter os domínios em seus territórios, a milícia muda o perfil e passa a aceitar ex-traficantes. Entre eles, Carlos Alexandre Braga, o Carlinhos Três Pontes, é nomeado líder da Liga da Justiça. O grupo muda de nome para milícia do CL ou 220. Há expansão do grupo para a Baixada Fluminense e interior do Rio de Janeiro. A milícia torna-se a maior do estado.

2012 - Com a Lei 12.720/2012 foi inserido o termo milícia para designar o crime de Constituição de Milícia Privada, com pena de 4 e 8 anos de reclusão.

2017 - Carlinhos Três Pontes é morto em operação policial. A liderança da milícia passa para seu irmão, Wellington da Silva Braga, o Ecko.

2018 - A vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes são mortos no centro do Rio. Diferentes linhas de investigação apontam motivações, entre elas, a atuação de milicianos no crime.

2019 - Ronnie Lessa, ex-PM, é preso suspeito de ter realizado os disparos contra a vereadora e seu motorista. Segundo investigação, ele era segurança de bicheiros e matador de aluguel. Ele nega as acusações e a participação nos assassinatos.

2021- O ex-chefe da milícia da Gardênia Azul e ex-vereador, Cristiano Girão, é indiciado e apontado como mandante do assassinato de um ex-policial, em 2008. O executor teria sido Lessa. Ambos negam. O governo de Cláudio Castro cria a força-tarefa da Polícia Civil no combate às milícias. Ekco é morto em ação policial. Segundo a promotoria, seu sucessor é outro irmão, Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho. Sua defesa nega.

2022 - Ainda de acordo com a promotoria, com a morte de Ecko e a prisão de lideranças, o grupo tem dissidências. Para manter o domínio, em algumas áreas, milicianos realizam alianças com traficantes, fenômeno que investigadores chamam de narcomilícia, como no caso da Gardênia Azul, zona oeste do Rio.

2022 - Jerominho é assassinado a tiros.

2023 - Os médicos Diego Ralf Bomfim, 32, Marcos de Andrade Corsato, 62, e Perseu Ribeiro Almeida, 33, são mortos a tiros em um quiosque na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. A polícia conclui que milicianos da Gardênia Azul, que realizaram uma aliança com traficantes do Comando Vermelho, foram os responsáveis pelos assassinatos. Eles teriam confundido Perseu com um homem acusado de ser integrante da milícia de Rio das Pedras, comunidade rival. Os suspeitos de terem matado os médicos foram mortos por traficantes em um tribunal do crime.

2023 - Por ordem de milicianos, 35 ônibus são incendiados no Rio de Janeiro. O maior ataque do tipo no estado teria sido uma retaliação à morte de Matheus da Silva Rezende, o Faustão, sobrinho de Zinho e apontado como um dos líderes da milícia.

Fonte: Polícia Civil do Rio de Janeiro; " Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense", José Cláudio Souza (2008, Editora Consequência); CPI das Milícias (2008, Alerj); Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro; "No ventre da fera: milícias, Estado e sistema de justiça", tese de doutorado de Tiago Abud da Fonseca (UENF, 2023).