USP completa 90 anos com o desafio de ser uma universidade para todos

Por ISABELA PALHARES E BRUNO LUCCA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O decreto de criação da USP (Universidade de São Paulo), em 25 de janeiro de 1934, trazia o mandamento de formar as futuras classes dirigentes do país. O texto apontava também para um objetivo que décadas depois segue um dos maiores desafios para a instituição: oferecer oportunidade a todos.

A instituição chega nesta quinta-feira (25) aos 90 anos como a mais importante da América Latina e a última do Brasil a adotar cotas raciais e para alunos de escola pública, fato firmado em 2018.

Desde então, a USP passou a ser cobrada por outras políticas e ações visando expandir a representatividade a outros setores, como a docência. O reitor, Carlos Gilberto Carlotti Júnior, reconhece ser esse o maior desafio para a próxima década da universidade.

Em 2023, mais da metade dos ingressantes nos cursos de licenciatura e bacharelado era oriunda de escolas públicas, sendo 27,2% autodeclarados PPI (pretos, pardos ou indígenas). Olhando para o total de matriculados, a representação dos graduandos desse grupo cai para 22,7%. A situação piora na pós, em que são apenas 9,1%.

"A USP achou que a população preta, parda e indígena iria se contentar apenas em conseguir um diploma. Não imaginavam que iríamos entrar aqui e querer permanecer, continuar estudando, alcançar postos mais altos e ter a oportunidade de tomar decisões", diz Lucas Melo, professor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, no interior paulista.

Melo faz parte da minoria de docentes negros na universidade. O grupo formou um coletivo para cobrar da reitoria maior diversidade no quadro de professores. Dos mais de 5.100 docentes ativos, apenas 2,4% são PPIs. Entre os titulares, únicos com possibilidade de chegar aos cargos de chefia das unidades, eles são apenas 0,9%.

"A estrutura segue privilegiando as mesmas pessoas que sempre predominaram nos espaços da universidade. Não adianta só garantir que os alunos entrem. É necessária representatividade entre quem toma decisões a impactar na permanência desses estudantes", diz Celso Oliveira, professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos.

Assim como resistiu a adotar cotas para ingresso na graduação, a USP também foi uma das últimas do país a implementar alguma ação nesse sentido para a contratação de professores. Isso ocorreu no último ano, após ter tido dois concursos suspensos pela Justiça pela inexistência de cotas.

"Os estudantes negros tentam encontrar professores negros para pedir ajuda, apoio, porque nós conseguimos entender as dificuldades que eles passam. A maioria, porém, não encontra", diz Dennis de Oliveira, professor da ECA (Escola de Comunicação e Artes).

Foi o que vivenciou Erick Araújo, 24, ao entrar na primeira turma de cotistas, em 2018, da Faculdade de Direito.

"Quando chegamos, os professores não entendiam precisarmos trabalhar e, por isso, ser impossível dedicar um dia todo aos estudos. Além disso, exigiam a leitura de textos em inglês, pensando terem todos o domínio da língua, o que não é a realidade dos mais pobres", conta.

Araújo e os professores defendem que a universidade deve compreender a política de permanência estudantil como algo mais amplo. Apenas apoio financeiro, raro, é insuficiente.

"Obviamente, as bolsas são importantes para alunos concluírem os cursos, mas a USP ainda falha em abordar questões mais subjetivas, em combater o racismo estrutural", afirma Adriana Alves, professor do Instituto de Geociências. "É a parte mais difícil, porque as pessoas no poder não compreendem as situações de desigualdade sendo reproduzidas."

COTAS PARA TRANS

Outra classe que reivindica uma política para ingresso e permanência na USP é a de pessoas trans. Hoje, elas são 0,7% do total de matriculados na graduação e 0,2% na pós. Na última greve geral desenrolada na universidade, no fim de 2023, um dos pleitos foi a criação de cotas para o grupo. O pedido não foi atendido.

Ação do tipo já é realidade em cinco instituições públicas do país. Três são baianas, Uneb (Universidade do Estado da Bahia), UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia) e UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana); uma é paulista, a UFABC (Universidade Federal do ABC); e outra é amapaense, a Ueap (Universidade Estadual do Amapá).

Para articuladores da USP, priorizar a inclusão de transgêneros segue a mesma lógica de outros tipos de cota, a de fazer reparação histórica. Eles justificam a demanda dizendo haver no Brasil o maior número de pessoas do grupo mortas anualmente.

Enquanto isso, os poucos alunos declarados trans matriculados relatam experiências divergentes. Em alguns institutos, têm apoio e acolhimento. Noutros, vivem excluídos e amedrontados.

Níke Krepischi, 23, vivencia o primeiro cenário. Estudante de artes visuais na ECA, ela acredita ser a USP hoje um dos locais mais seguros para ela. "Não é perfeito, claro, mas eu encontrei acolhimento aqui", diz.

A jovem, porém, lamenta a falta de incentivo para ingresso de pessoas como ela. "Sou uma pessoa privilegiada, estudei em escola particular. A realidade de pessoas como eu é diferente. Muitas estão, por falta de escolha, na marginalidade."

Outros três estudantes foram ouvidos pela Folha de S.Paulo. Nenhum quis se identificar por medo de retaliação. Eles relataram constrangimentos de colegas e professores quanto à sua identidade.

Dois são matriculados na Poli (Escola Politécnica) e um na FEA (Faculdade de Administração, Economia e Contabilidade).

O reitor Carlotti Júnior afirma não haver de fato debate para cota de ingresso, mas existe uma série de ações para que todos se sintam mais confortáveis na universidade.

"Eu acho que para algumas populações, como a LGBTQIA+, o problema não é entrar na universidade, mas permanecer nela. Por isso, eu me preocupo mais com a permanência, com políticas para serem respeitados aqui dentro", declara.