'DNA saltador' ajudou ancestrais do ser humano a perder a cauda

Por REINALDO JOSÉ LOPES

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - A perda da cauda, uma transformação anatômica fundamental para o surgimento da linhagem dos seres humanos, pode ter sido desencadeada por um pedaço de DNA que é capaz de "saltar" de um ponto a outro do genoma, afirma um novo estudo feito por pesquisadores nos Estados Unidos. Análises de material genético e experimentos com camundongos corroboram a hipótese, embora ainda não esteja claro por que alguns primatas ficaram sem rabo a partir de uns 25 milhões de anos atrás.

A nova pesquisa sobre o tema acaba de sair na revista especializada Nature. A equipe de cientistas foi liderada pelo trio Bo Xia, Itai Yanai e Jef Boeke, todos ligados ao NYU Langone Health, centro de pesquisa e atendimento médico da Universidade de Nova York. Curiosamente, segundo entrevista de Xia à Nature, tudo começou quando ele próprio machucou sua "cauda" -ou, pelo menos, o que resta dela no pesquisador e nos demais seres humanos.

Trata-se, é claro, do cóccix, um conjunto de vértebras rudimentares no fim da coluna que corresponde justamente a uma forma muito encurtada e modificada do rabo dos demais primatas. O cóccix não é exclusivo do Homo sapiens, estando presente também nos grandes símios -gibões, orangotangos, gorilas e chimpanzés--, que também são primatas sem cauda.

Xia machucou o cóccix andando de táxi e logo se recordou da curiosidade que tinha sobre o tema ainda criança, quando perguntou certa vez: "Onde está o meu rabo?". Com o sinal verde de Yanai e Boeke, seus orientadores de doutorado, ele se pôs a vasculhar bases públicas de dados genômicos. Seu plano era analisar trechos de DNA que pudessem estar ligados à formação da cauda, ou à ausência dela.

De um lado, ele se concentrou em genes que têm mutações (alterações aleatórias no DNA) relativamente bem conhecidas em camundongos de laboratório, mostrando que elas afetam mesmo o desenvolvimento do rabo. De outro, ele verificou se esses mesmos genes tinham alterações exclusivas de grandes símios e seres humanos, o que apontaria uma relação mais provável com a falta de cauda nessa linhagem.

O curioso é que ele não achou trechos de DNA promissores nas chamadas regiões codificadoras do genoma -ou seja, aquelas que contêm o código para a produção de componentes de proteínas. Durante muito tempo, acreditou-se que as regiões codificadoras eram as mais importantes para o desenvolvimento do organismo e para a evolução dos seres vivos, mas há cada vez mais indícios de que elas são só uma parte desses processos. E, de fato, os autores do estudo identificaram que a chave para o enigma poderia estar numa região não codificadora.

Trata-se de um pedaço de DNA com cerca de 300 "letras" químicas, classificado como um "elemento Alu" -um tipo de elemento genético móvel ou transponível, ou seja, que consegue copiar a si mesmo ou mudar de posição ao longo da "biblioteca" do genoma. Os elementos Alu parecem ter sido tão hábeis nessa tarefa no passado da nossa linhagem que hoje compõem cerca de 10% do DNA humano.

Acontece que o elemento Alu identificado por Bo Xia e seus colegas aparece justamente na sequência de DNA de um gene importante para o desenvolvimento da cauda. Além disso, ele é exclusivo dos grandes símios e dos seres humanos. Em tese, ele não deveria afetar o funcionamento desse gene, porque o elemento Alu está numa região dele que é "cortada" durante o processo de leitura do gene pela célula. É mais ou menos como se este parágrafo contivesse um trecho entre colchetes, dizendo algo como: [ignorar esta frase na hora da leitura].

Experimentos feitos pela equipe, porém, mostraram que não é isso o que acontece. No processo de leitura do gene pela célula, esse elemento Alu interage com outro parecido, localizado a certa distância dele. E o resultado é que parte da mensagem contida no gene é eliminada. É como se, em vez de dizer algo como "Não deixar nenhum macaco sem cauda", as palavras "Não" e "nenhum" fossem cortadas. A frase ficaria: "Deixar macaco sem cauda".

Para confirmar se era isso mesmo o que estava acontecendo, os pesquisadores fizeram uma ampla gama de testes de laboratório com embriões de camundongos geneticamente modificados. Eles tentaram simular as alterações dos elementos Alu que acontecem nos primatas da nossa linhagem nos roedores. E o resultado foi que, de fato, as mudanças de fato parecem favorecer a ausência ou a redução da cauda.

É bastante provável que essa alteração, embora importante, não tenha sido a única a conduzir a nossa linhagem rumo à vida sem rabo. Além disso, embora se especule que a ausência de cauda tenha sido um elemento importante para a locomoção bípede, também é verdade que muitas espécies arbóreas ou escaladoras, a exemplo dos orangotangos, tampouco têm cauda. Por isso, os motivos por trás da alteração evolutiva ainda são obscuros.