Relatório da Polícia Federal acirra disputa com PRF, e sindicato acusa PF de abandonar população
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Relatório da Polícia Federal sobre uma operação conjunta em Varginha (MG), com 26 mortes, e que resultou no indiciamento de 23 integrantes da Polícia Rodoviária Federal acirrou uma disputa histórica que divide as duas corporações e envolve também o Ministério Público e o Poder Judiciário.
De um lado, a PF trabalha nos bastidores para impor limites aos poderes da PRF e restringir a atuação ao patrulhamento de rodovias. De outro, a polícia rodoviária tenta manter a validade de uma portaria que amplia as atribuições da instituição e pressiona o Ministério da Justiça por mais segurança jurídica para os profissionais que estão na ponta.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, por sua vez, tenta se equilibrar para não desagradar nenhuma das forças sob seu comando. Uma das estratégias estudadas pelo magistrado é apoiar a aprovação de uma lei orgânica para cada uma das corporações no Congresso a fim de detalhar os limites de suas funções.
O ex-integrante do STF (Supremo Tribunal Federal) é um crítico da norma em debate, que amparou a participação da PRF em operações polêmicas, como a da Vila Cruzeiro (RJ), que acabou com 23 mortos, a de Itaguaí (RJ), que teve 12 pessoas mortas, e a de Varginha (MG), que registrou 26 mortes.
Essa última foi a responsável por reacender a disputa após a PF indiciar os 23 policiais rodoviários federais envolvidos na operação.
No relatório, o delegado do caso afirmou que o órgão não tem poder para tocar apurações contra suspeitos.
"Para a equipe de investigação [ficou] a certeza de que houve uma investigação ilegal perpetrada por órgão sem atribuição constitucional para tal encargo, alapardada dos órgãos de controle e sem registros oficiais", diz o texto.
A Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais reagiu e acusou a PF de abandonar a população, além de ter afirmado que bancará os custos dos acusados para contestar laudos que os comprometem pelas mortes.
A discussão sobre o limite de atuação da PRF ganhou força depois de 2010, quando alguns termos de cooperação foram assinados entre a polícia rodoviária e unidades do Ministério Público, inclusive federal.
O pano de fundo do debate era outra disputa histórica, entre a PF e promotores e procuradores. Como em muitos casos a Polícia Federal não tinha estrutura suficiente para ajudar em investigações do MP e preferia priorizar apurações já em curso na corporação, o Ministério Público passou a recorrer, em alguns casos, à PRF.
Diante do cenário, o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, em 2019, assinou uma portaria formalizando a ampliação das atribuições da PRF.
A Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal entrou com uma ação no STF contra a norma. A corte, por 6 votos a 4, declarou o texto constitucional.
Na ocasião, porém, Lewandowski votou para derrubar a norma e acompanhou o voto do ministro Edson Fachin, para quem o texto extrapola as competências constitucionais da PRF por prever a atuação dela nas esferas "estaduais, distrital ou municipais".
Depois do julgamento e da saída de Moro do governo, o então titular da pasta, André Mendonça (hoje ministro do STF), editou em janeiro de 2021 nova portaria para retirar o trecho que causava mais discórdia entre as polícias e dava margem para eventuais medidas investigativas da PRF.
Ele manteve, no entanto, a permissão para atuar em operações conjuntas e ingressar em locais alvos de mandado de busca e apreensão, além de estabelecer que a participação da PRF nas operações conjuntas deverá ser autorizada pelo diretor-geral.
Quando tomou posse, o primeiro ministro da Justiça da terceira gestão Lula (PT), Flávio Dino, chegou a dizer que iria rever a portaria. Na transição, disse que debateria um novo texto em que a PRF pudesse participar de operações integradas, no limite de suas competências.
"[Queremos que a PRF] volte a sua vocação primeira, prevista na Constituição, de garantir segurança viária, portanto não há base legal para que a PRF exerça outras funções", disse.
Depois disso, no entanto, houve a avaliação de Dino de que o efetivo da PRF poderia ser útil em algumas ações de seguranças e ele acabou não mudando a portaria.
Agora, Lewandowski estuda rever a medida e tem afirmado nos bastidores que é necessário enquadrar a portaria aos parâmetros da competência da PRF prevista na Constituição.
Na visão de pessoas próximas ao ministro, pode ser permitida do ponto de vista legal a atuação da PRF em casos que ocorram nas margens das rodovias federais, por exemplo.
Operações policiais em que a corporação é convocada para auxiliar polícias locais por decisões de juízes estaduais com base na portaria, porém, são criticadas internamente.
A ideia de que a PRF deve ajudar em operações de combate à criminalidade no geral é mal vista por Lewandowski. Aliados do ministro citam a compra de 69 veículos blindados pela gestão de Silvinei Vasques, ex-diretor da corporação e atualmente preso por ordem do STF, e de Anderson Torres no Ministério da Justiça, como um exemplo do desvirtuamento da instituição.
Foi realizada uma licitação para aquisição de 12 veículos de grande porte chamados de "caveirão" e 51 menores, os "caveirinhas", por cerca de R$ 100 milhões.
Os blindados são similares aos usados por forças especiais de polícias estaduais em grandes operações e foram pensados para ter o mesmo fim em ações da PRF que geralmente são desencadeadas com base na portaria em debate atualmente.
Nos bastidores, policiais rodoviários dizem não ver problema em discutir a portaria e delimitar de maneira clara as atribuições da instituição. Pelo contrário, afirmam que atualmente os profissionais vivem uma insegurança jurídica porque participam das operações por ordens judiciais e ordens dos próprios chefes sem saberem se estão, de fato, respaldados do ponto de vista legal.