Discurso de ódio racista usa piada como se fosse um escudo nas redes sociais
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O discurso de ódio em redes sociais tem uma vítima e uma linguagem que se repetem, afirma o sociólogo Luiz Valério de Paula Trindade.
Os alvos costumeiros são as mulheres negras, e a forma como o discurso racista aparece é a da piada, diz o autor de "Discurso de Ódio nas Redes Sociais" (Ed. Jandaíra, 2022).
A obra é fruto de pesquisa realizada por ele em publicações nos perfis de pessoas comuns e de celebridades.
A apresentação do discurso de ódio como piada "é bastante desafiadora para a vítima e é muito conveniente para o agressor, porque frequentemente ele alega que tudo não passou de uma brincadeirinha", afirma Trindade.
Doutor pela Universidade de Southampton, na Inglaterra, ele avalia em entrevista à Folha que a questão remonta à formação da sociedade brasileira e se agrava com a ascensão social de mulheres negras.
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Folha - O que você encontrou na sua pesquisa sobre discurso de ódio nas redes sociais?
Luiz Valério - Meu objetivo era identificar por que havia ainda tanto discurso de ódio de cunho racista circulando nas redes sociais. Quando eu estava na análise teórica, imaginava que isso afetava mulheres e homens negros na mesma proporção. À medida que coletei e analisei os dados, acabei me deparando com um quadro no qual 80% das vítimas de discurso de ódio de cunho racista são mulheres negras.
Folha - Qual a hipótese para explicar por que as mulheres negras são mais atingidas por esse fenômeno?
Luiz Valério - O modelo de identidade nacional pelo qual o Brasil passou desde a Proclamação da República, passando também pela abolição da escravidão, supervalorizava a branquitude como modelo único de humanidade e modernidade. Esse conceito permaneceu e permanece até hoje, profundamente enraizado no imaginário coletivo de tal forma que mulheres negras, principalmente jovens, quando ascendem socialmente, causam estranhamento em algumas pessoas.
Pessoas que alimentam essa ideologia e acreditam na supremacia branca, no sentido dos brancos como representantes únicos e universais de humanidade, modernidade, inteligência, progresso e toda uma série de atributos positivos. Quando uma mulher negra ascende socialmente, ela entra em choque com essa crença e se torna vítima desse tipo de ação. É como se esses usuários de redes sociais dissessem: mas como é possível?
Folha - Não existe essa mesma questão em relação aos homens negros? Qual é a diferença?
Luiz Valério - Existe numa proporção muito menor. O que acontece é que, no caso das mulheres negras, tem o que se chama interseccionalidade de diferentes dimensões que amplificam esse problema social. Tem a questão de gênero, a questão de raça e a questão de classe também envolvida, além do lugar de origem. Por exemplo, se a mulher negra é da região Norte ou Nordeste, tem outro elemento que impacta esse processo. A mulher negra está na base da pirâmide social, então, por conta da interseccionalidade desses elementos, se torna uma vítima muito frequente desse tipo de ação.
Folha - No livro, você cita alguns posts com racismo muito explícito, como xingamentos de "macaca". E a manifestação mais velada de racismo, de que forma apareceu?
Luiz Valério - Identifiquei as duas características. Um é essa forma bastante explícita, com palavras muito agressivas, e frequentemente o uso de palavrões. Outra característica é a camuflagem desses discursos por meio de piadas depreciativas. Isso é bastante desafiador para a vítima e é muito conveniente para o agressor, porque frequentemente ele alega que tudo não passou de uma brincadeirinha. É mais uma faceta do famoso jeitinho brasileiro. Essas pessoas se escondem atrás da piada como se fosse um escudo, que permite a essa pessoa liberar toda a sua ideologia preconceituosa e discriminatória.
Folha - É isso que significa o racismo à brasileira que você menciona?
Luiz Valério - Exatamente, porque a piada constitui uma forma de comunicação socialmente aceitável, e o brasileiro é conhecido por sua informalidade. Então isso permite que esse conteúdo navegue livremente nas redes sociais, mas atingindo um grupo específico. Essa é a sociedade do chamado racismo à brasileira.
Folha - Tanto do lado das vítimas, como do lado dos agressores, a gente está falando de pessoas comuns ou de pessoas públicas ou ambos?
Luiz Valério - Tem as duas características. A grande diferença é que, como a celebridade tem uma visibilidade maior do que as pessoas comuns, ela se torna alvo mais fácil para esses agressores. Então aquele conteúdo que ataca tende a circular de forma muito mais intensa e mais rápida. Outro aspecto é que esses agressores, mesmo não conhecendo a vítima, se sentem próximos e, entre aspas, autorizados a atacá-las porque elas são públicas.
Folha - No seu livro, você fala que as redes sociais se tornaram um pelourinho moderno. Qual relação a gente pode fazer entre o racismo nas redes sociais e a história do Brasil?
Luiz Valério - Essa expressão do pelourinho moderno é uma analogia para explicar como as plataformas de redes sociais se tornaram uma espécie de praça pública para linchamento virtual das vítimas. O pelourinho era uma praça pública no Brasil colonial para castigar os negros que ousavam desrespeitar as normas do senhor de escravos.
Os negros que fugiam para os quilombos ou que organizavam revoltas eram capturados e castigados em praça pública para servir de exemplo para que outros não ousassem seguir o mesmo caminho. O que vemos nas redes sociais atualmente, guardadas as devidas proporções, é a mesma ideia de castigar as mulheres negras que ousam ocupar espaços sociais que não são considerados como legitimamente pertencentes a elas.
Folha - Que consequência pode ter um ataque racista nas redes sociais para uma mulher negra?
Luiz Valério - Muitas. Um dos casos que analisei é de uma vítima que desenvolveu síndrome do pânico. Ela tinha muito medo de sair de casa porque ela pensava que se saísse de casa as pessoas a reconheceriam por causa do post e iriam rir da cara dela. O impacto daquelas ações no ambiente virtual reverbera no mundo real. Outro aspecto importante é que o conteúdo que essas pessoas postam não desaparece da noite para o dia. Continua a engajar usuários tanto novos quanto recorrentes por até três anos.
Folha - Quais seriam as soluções para o problema?
Luiz Valério - Defendo quatro pilares. O primeiro é a conscientização nas escolas de educação básica, para desconstruir essas ideologias. O segundo está no ordenamento jurídico. As tecnologias avançam numa velocidade muito grande. É óbvio que o ordenamento jurídico não vai conseguir acompanhar no mesmo ritmo, mas também não pode ter um intervalo tão grande em termos de legislações. O terceiro pilar é o das plataformas, elas precisam educar seus usuários para que eles deixem de acreditar que o ambiente virtual é uma terra de ninguém. O quarto pilar é o das entidades. O governo precisa atuar na conscientização da população e municiar mecanismos para que as vítimas tenham onde denunciar.
Folha - O racismo na sociedade brasileira tem uma história longa. Já as redes sociais são um fenômeno mais recente. Como o racismo entrou nas redes sociais?
Luiz Valério - Não é que as plataformas inventaram o ódio, porque esse sentimento já estava presente na sociedade há muito tempo. Mas elas potencializaram isso de uma forma impressionante.