Filme-denúncia sobre Bolsonaro 'não poderia ser feito no Brasil', diz diretor autoexilado

Por FERNANDA MENA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Ô bicharada, toma cuidado: o Bolsonaro vai matar viado." Durante as eleições de 2018, quando esse grito ecoou entre torcidas organizadas no Brasil, o cineasta Fernando Grostein Andrade e seu marido, o ator e cantor Fernando Siqueira, já estavam de malas prontas para um autoexílio na Califórnia (EUA).

Foi lá que o casal elaborou um olhar próprio sobre o modelo de masculinidade que o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), evoca -"imbrochável" e "incomível"-, como se sua virilidade estivesse sob ameaça.

O resultado é "Quebrando Mitos", que estreia na sexta (16) na internet. O filme confronta medo, violência e estereótipos com movimentos de resistência que emergiram ou se fortaleceram no país nos últimos anos.

No documentário, as consequências da gestão Bolsonaro para a vulnerabilidade dos povos indígenas, a destruição do ambiente, o combate à Covid, a explosão do número de armas com civis, os ataques à imprensa e a ameaça a ativistas de direitos humanos são destacadas, assim como os elos da família Bolsonaro com milícias e as coincidências que ligaram o nome do presidente ao caso Marielle Franco.

"É um filme que não poderia ser feito no Brasil", diz Grostein, sobre o atual contexto político do país. "É um privilégio poder estar nos EUA agora, e fazer esse filme é exercer esse privilégio com responsabilidade", afirma o cineasta, que dirigiu "Quebrando o Tabu" (2011), sobre a falência da guerra às drogas e que deu origem a uma página sobre direitos humanos, hoje com 21,1 milhões de seguidores em redes sociais.

Foi na época do lançamento do primeiro documentário que Grostein recebeu as primeiras mensagens de ódio. "Eram ameaças anônimas e outras nem tão anônimas de policiais e fanáticos de extrema direita", diz ele, que teve a página do Quebrando o Tabu invadida com a imagem de uma caveira com uma faca.

Em 2017, o cineasta fez barulho nas redes ao sair do armário com um vídeo intitulado "Cê Já se Sentiu um ET?". Nas entrevistas a respeito dos dilemas em torno da homossexualidade, Grostein discorreu sobre política e a preocupação com a ascensão de Bolsonaro, que "ainda era tratado como piada".

"Passei a receber ameaças de morte para valer", lembra ele. "Diziam que ia ter velório com caixão lacrado, que eu ia apanhar na rua para deixar de ser viado. Surgiram fake news a meu respeito. Foi assustador."

Grostein buscou conselhos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), protagonista de "Quebrando o Tabu", que lhe indicou conversar com um criminalista experiente. "O advogado disse que denunciar o caso à polícia seria perigoso, já que partes das forças, do Ministério Público e da Justiça estavam comprometidos com células de ódio." Foi a senha para o autoexílio.

Num arco narrativo amplo, o documentário remonta a trajetória do atual presidente, famoso por frases homofóbicas desde os anos de sua criação, em Eldorado (SP), no Vale do Ribeira. Também costura a construção de uma masculinidade classificada de tóxica com os processos de rejeição e abuso pelos quais Grostein passou até conseguir assumir sua homossexualidade para si e para os outros.

"Masculinidade tóxica mata", afirma o diretor, que cunhou o termo "masculinidade catastrófica" para se referir a Bolsonaro e também ao ex-presidente dos EUA Donald Trump.

Bolsonaro já disse que "ter filho gay é falta de porrada" e que prefere "que um filho meu morra num acidente a aparecer com um bigodudo por aí", como afirmou à revista Playboy em 2011.

Filho do publisher da Playboy no Brasil e irmão do apresentador da TV Globo Luciano Huck, Grostein cresceu rodeado de fotos de mulheres nuas e conversas sobre erotismo. Criança, cultivava orquídeas enquanto tentavam empurrá-lo para o futebol. Ganhou o apelido de florzinha, o que semeava a sensação de desajuste, numa engrenagem de rejeição e sofrimento que fez um de seus melhores amigos se matar.

Grostein conta ter sido alvo de violência sexual duas vezes na vida, uma na adolescência e outra na fase adulta. "Era importante escancarar quem eu sou e de onde venho como forma de sermos honestos com o espectador. O filme tem o olhar de uma pessoa LGBTQIA+ que enfrentou desafios comuns a esse grupo."

Há entrevistas com amigos de infância e pessoas próximas ao presidente, além de ativistas, lideranças indígenas, ambientalistas, políticos de parte a parte e jornalistas, entre os quais o diretor de Redação da Folha, Sérgio Dávila, e a repórter especial Patrícia Campos Mello, autora do livro "A Máquina do Ódio".

Carol Pires, criadora do podcast Retrato Narrado, assina o roteiro do filme com Joaquim Salles e mostra ao espectador as origens do presidente e suas relações com diversos traços do bolsonarismo, como a exaltação do garimpo, o ataque a quilombolas e a indígenas e o fascínio pelo Exército e por armas.

O tom confessional do documentário cresceu ao longo dos anos de projeto. "Quebrando Mitos" reúne farto material sobre a formação e o percurso políticos de Bolsonaro e os tumultos e as crises que marcaram sua campanha, governo e candidatura à reeleição, da facada às ameaças contra as urnas eletrônicas.

"Depois de dois anos assistindo a tantas falas de Bolsonaro, a imagens de chacinas e a depoimentos de vítimas, e de entrevistar pessoas que provocaram tantos danos, como o Jerominho [o ex-vereador, ex-policial e miliciano Jerônimo Guimarães Filho, morto neste ano], entrei em colapso", afirma o diretor.

"Fiquei derrubado, e o Fernando assumiu a montagem do filme. Ele me levantou, e viemos juntos até o final", diz Grostein, que passou a compor músicas com o marido para "se desintoxicar de tanta tragédia".

Uma dessas canções, "Califórnia", está no filme, cujo cartaz mistura balas de fuzil, orquídeas e a frase que o ex-deputado Jean Wyllys, hoje também em autoexílio, disse no plenário da Câmara depois de noticiado o assassinato de sua então colega de PSOL, Marielle Franco, em 2018: "As ideias são à prova de balas".