Mídia e Justiça diferenciam Brasil de outros países com escalada autoritária
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A reação do Judiciário, a atuação da imprensa e a falta de controle pleno sobre o Congresso impediram nos últimos quatro anos o Brasil de seguir o caminho de países em escalada autoritária como Hungria, Turquia e Venezuela, avaliam especialistas em política internacional.
A experiência mostra, por outro lado, que o cenário pode mudar a depender do resultado das eleições de outubro. Isso porque uma série de condições torna mais fácil para líderes com pouco apreço pela democracia tomar medidas para concentrar mais poder em um segundo mandato.
A comparação do Brasil do presidente Jair Bolsonaro (PL) com a Hungria de Viktor Orbán, a Polônia de Andrezj Duda ou mesmo os EUA do período Donald Trump se deu desde o início do mandato do brasileiro pelo conceito da erosão do sistema democrático por dentro.
Notabilizado no livro "Como as Democracias Morrem" (ed. Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ele parte da ideia de que sistemas democráticos hoje em dia são minados por dentro por líderes eleitos que gradualmente enfraquecem as instituições.
Ao longo de quatro anos, Bolsonaro atacou o Judiciário e o jornalismo profissional, vinculou o acesso a armas ao jogo político ("povo armado jamais será escravizado"), tentou minar a credibilidade do sistema eleitoral e disse que só sairia da Presidência morto ou com vitória.
De 2011 a 2021, o país registrou a terceira maior queda no mundo no ranking global de liberdade de expressão, divulgado pela ONG Artigo 19 em junho.
A piora no indicador se acentuou em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro. De cinco anos para cá, o país passou do status menos restrito para restrito, o mesmo da Hungria.
Ainda assim, especialistas avaliam que as instituições brasileiras dão mais sinais de resiliência do que as do país europeu, recentemente classificado como "autocracia eleitoral" pelo Parlamento Europeu.
Desde que voltou a liderar a Hungria, em 2010, Orbán tomou uma série de medidas que sufocaram a independência do Poder Judiciário. Entre elas estão a transferência de atribuições para um órgão liderado por aliados do presidente e a redução da idade de aposentadoria compulsória de juízes de 70 para 62 anos, abrindo espaço para a presença de nomes alinhados com o governo.
Sob pressão da União Europeia, a redução da idade foi revogada, mas, como não foram dadas garantias aos magistrados que haviam sido retirados, a maioria deles optou por não voltar à ativa.
No Brasil, aliados de Bolsonaro também agiram para reduzir a idade de aposentadoria compulsória dos juízes, mas a ideia não prosperou até o momento.
Além do Judiciário, o professor de relações internacionais da USP Felipe Loureiro assinala a atuação da imprensa como outra diferença significativa entre o Brasil e demais países com ameaça autoritária.
Na Hungria, a mídia independente foi tolhida ao longo dos mandatos de Orbán com medidas como cassação de licença, compra de veículos por empresários amigos do poder e pressão a anunciantes.
No Brasil também houve ataques em série do presidente ao trabalho de jornalistas e pressão sobre anunciantes, mas a atuação do jornalismo profissional se manteve e foi até fortalecida com a pandemia de Covid, avalia Denise Dora, diretora executiva da Artigo 19 no Brasil.
A mobilização diante da falta de respostas do governo brasileiro, segundo ela, deu-se tanto no jornalismo, com ações como o consórcio de veículos que monitora casos e óbitos, como na sociedade civil.
Lideranças comunitárias e entidades se organizaram ao longo da pandemia para reivindicar maior agilidade na vacinação e organizar a distribuição de alimentos e doações, entre outras ações.
"A participação cívica é um elemento importante da liberdade de expressão, e ela se fortaleceu nesse contexto", afirma.
Outra diferença importante do Brasil em relação à Hungria é o maior controle do governo do país europeu sobre a agenda do Legislativo, afirma Thiago Amparo, professor de direito internacional e direitos humanos da FGV e doutor pela Central European University em Budapeste.
Tal controle, segundo ele, foi possível graças ao próprio sistema parlamentarista húngaro e ao sucesso de Orbán em mudar regras eleitorais.
Por outro lado, Amparo faz a ressalva de que Bolsonaro obteve êxito em dois pontos prioritários para sua agenda: barrar investigações contra si, por meio de uma Procuradoria-Geral da República alinhada, e facilitar o acesso a armas.
Em sua visão, compartilhada pelos demais especialistas ouvidos pela reportagem, o presidente poderá aprofundar essa agenda se conseguir um segundo mandato.
"Líderes com retórica autoritária se elegem muitas vezes em meio a uma onda antiestablishmet, em que as pessoas querem punir a elite política", diz Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV. "Mas, quando recebem um novo mandato, têm um empoderamento porque se entende que as pessoas deram aval a eles mesmo já cientes da sua tendência autoritária", afirma.
Além disso, uma maior permanência no poder aumenta a possibilidade de o presidente indicar magistrados alinhados.
Outro fator importante é a adesão do funcionalismo. Ao longo dos quatro anos de Bolsonaro, o presidente conseguiu interferir em diversos órgãos e políticas públicas, em especial na área indígena e ambiental, mas também houve resistência de servidores de determinadas áreas.
Exemplos nesse sentido foram os pedidos de demissão em massa no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) e a atuação de delegados e cientistas de órgãos oficiais ?alguns dos quais são candidatos ao Legislativo na atual eleição.
"Muitas burocracias resistem por um mandato porque burocratas estão dispostos a abrir mão de promoções por quatro anos, mas não por muito mais tempo", diz Stuenkel.
O professor também ressalta que o Brasil não pertence a um bloco como a União Europeia, que chegou a impor obstáculos para a reforma do Judiciário na Hungria e na Polônia.
Loureiro, da USP, ressalta ainda outra diferença em relação ao cenário internacional: enquanto nos EUA Trump não conseguiu a adesão da cúpula das Forças Armadas, no Brasil o governo Bolsonaro se misturou aos militares, e a conduta das forças diante de eventuais episódios de violência política ainda é uma incógnita.
Para o professor, declarações em tom mais moderado de Bolsonaro e seu grupo político nas últimas semanas devem ser vistas como um movimento tático para tentar garantir um lugar no segundo turno.
"Em um eventual segundo turno não tenho dúvidas de que vamos ver de novo radicalização retórica", afirma.