Desmilitarizar Ministério da Defesa sem criar crise é desafio para Múcio

Por IGOR GIELOW

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Há duas semanas, quando o nome de José Múcio Monteiro foi levado aos comandantes de Forças como a opção preferencial de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a pasta da Defesa, um integrante da cúpula militar brasileira relatou alívio generalizado e preocupação.

Segundo esse oficial-general, o fato de Múcio ser visto como um político moderado e habilidoso distante do PT foi motivo de celebração.

Havia nas Forças o temor de que Lula buscasse algum tipo de acerto de contas com o Exército, como retaliação pela pressão feita pelo então comandante Eduardo Villas Bôas para que o Supremo Tribunal Federal não lhe concedesse o habeas corpus que poderia ter evitado seus 580 dias na cadeia, em 2018.

Além disso, o sequestro, muitas vezes voluntário, do estamento militar pelo governo do capitão reformado Jair Bolsonaro (PL) gerou no petismo a impressão de que as Forças Armadas não respeitariam a autoridade do novo presidente. Oficiais-generais negam isso, mas admitem a má vontade da categoria com Lula.

Já a apreensão decorre das dúvidas acerca de como se dará o processo de desmilitarização do comando da pasta, ocupada por generais de quatro estrelas da reserva desde que Michel Temer (MDB) colocou Joaquim Silva e Luna à sua frente, em 2018.

Para um ex-ministro da Defesa que conhece bem o futuro titular, o processo deverá ser cauteloso para evitar uma crise já no começo do governo. Nos últimos anos, os civis desapareceram do prédio da pasta na Esplanada dos Ministérios, mas não é só isso.

Desde sua origem, em 1999, a Defesa foi envolta em turbulências inerentes ao fato de que foi criada para tirar poder dos antigos ministérios de cada Força. Além disso, até a chegada de Nelson Jobim à pasta em 2007, seus ocupantes eram vistos como no mínimo desinteressados pelo tema militar, quando não inaptos.

Com efeito, dos 14 ocupantes da pasta nesses 23 anos, 5 caíram em crises -a mais grave ocorrida justamente quando Fernando Azevedo e os comandantes de Forças bateram de frente na intenção de Bolsonaro de usar o serviço ativo em sua campanha contra o manejo da pandemia pelos governadores.

Desde então, em maio do ano passado, o ministério não só permaneceu militar, mas foi comandado por aliados próximos do presidente. Walter Braga Netto virou seu candidato a vice e o atual titular, Paulo Sérgio Nogueira, alimentou a campanha golpista de Bolsonaro contra o sistema eletrônico de votação.

Cumprirá a Múcio apaziguar os ânimos. Se sua indicação foi muito bem recebida na caserna, a primeira missão colocou isso em prova: a promoção dos novos comandantes de Força. Para complicar, houve um movimento dos três atuais para deixar o cargo antes do fim do ano.

Eles defendem que isso visava facilitar a transição, mas no mundo político o ato foi visto como uma insubordinação à autoridade de Lula. Ato contínuo, o petista acionou Múcio, um experiente ex-deputado do PTB e ex-ministro do Tribunal de Contas da União, para sinalizar comedimento.

Em resposta, o Alto-Comando do Exército e o Almirantado demoveram os chefes das respectivas Forças de antecipar sua saída. Isso não ocorreu na Força Aérea, onde o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior marcou sua passagem de comando para 23 de dezembro.

Mesmo que isso ocorra, a crise tenderá a refluir dadas as escolhas de Múcio. Ele indicou nomes dos novos chefes oriundos militares da lista tríplice dos mais antigos oficiais-generais de cada Força. Na mais importante, o Exército, foi de Julio César de Arruda, o decano do Alto-Comando.

A normalização da crispação atual é prioritária para Lula, dada a associação dos militares com o bolsonarismo que apadrinharam em 2018 e o fato de que há ainda manifestantes pedindo para as Forças darem um golpe e impedirem o petista de assumir na frente de quartéis no país todo.

A ambiguidade com que os atuais comandantes trataram do tema, evitando criticar os golpistas, preocupa o entorno de Lula. Não por uma possibilidade de golpe, algo visto como fora de questão, mas pela manutenção do clima de polarização radicalizada no país.

Um instrumento clássico à disposição do petistas, inclusive já usado por ele nos seus oito anos de governo (2003-10), é o agrado orçamentário. Após um salto devido a uma manobra de capitalização de uma empresa ligada à Marinha para construir fragatas, o gasto militar sob Bolsonaro patinou.

Em 2018, com valores corrigidos pelo IPCA, a Defesa teve R$ 145 bilhões de gastos executados. No ano passado, foram R$ 124 bilhões, e neste 2022, até esta semana foram gastos R$ 100,7 bilhões. O grosso disso vai para pessoal: quase 75% no ano passado, a maior parte para aposentados e pensionistas.

Mesmo com esse engessamento, a pasta escapou de parte do aperto salarial do funcionalismo e tem a quarta maior verba discricionária da Esplanada: R$ 11 bilhões neste ano. A questão central para os militares é a manutenção dos chamados projetos estratégicos.

Os principais em curso são o do caça Gripen e do cargueiro KC-390 na FAB, o blindado Guarani no Exército e o programa de submarinos da Marinha. Todos já foram afetados por cortes em algum estágio de seu desenvolvimento.

Obviamente, há enorme dificuldade de vender para o público de um país carente como o Brasil a necessidade de manter a defesa do país em dia, ainda que de forma bastante insatisfatória. Hoje o país gasta cerca de 1,2% de seu PIB com o setor, embora almeje chegar ao padrão recomendado pela Otan (aliança militar ocidental) de 2%.

Há erros de comunicação básicos, como no episódio em que a Justiça suspendeu a compra de viaturas blindadas italianas Centauro-2 pelo Exército. A Força deixou circular a versão de que a aquisição de 98 delas custaria R$ 5 bilhões aos cofres públicos, como se isso fosse ser pago de uma vez.

Só depois de um desembargador tomar a decisão baseado nesses dados o Exército esclareceu que só iria comprar duas para avaliação e, se aprovadas, as restantes seriam pagas ao longo talvez de duas décadas por um valor menor, R$ 3,3 bilhões.

Como Lula indica que não procurará mexer em temas delicados, como o currículo de academias militares como o PT desejava no governo Dilma, restará a Múcio a missão de equilibrar as demandas cotidianas dos fardados com a redução da temperatura política.

Isso será, claro, facilitado a partir do momento em que Bolsonaro não estiver mais no Planalto, mas é um desafio inédito para uma das mais instáveis pastas da República.