Procura por vândalos após ataques golpistas abre debate sobre denuncismo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A máxima das redes sociais de que "o print é eterno" levou a um inédito mutirão assim que golpistas apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadiram e depredaram os prédios dos três Poderes em Brasília no domingo passado (8).
Vídeos e fotos publicados em tempo real pelos extremistas viraram provas contra eles mesmos, em um esforço coletivo virtual para nomear suspeitos e cobrar punições.
O movimento logo saltou dos perfis colaborativos na internet --cheios de boas intenções, mas sem controle sobre exposição de imagem e veracidade dos relatos-- para o aparato do Estado. Ministério da Justiça, Ministério Público Federal e Polícia Federal criaram canais para denúncias anônimas.
O apontar de dedos produziu dilemas e equívocos. Um funcionário do Banco do Brasil indicado nas redes como o homem que simulou defecar no chão do STF (Supremo Tribunal Federal) teve que aparecer para negar ser ele nas imagens. Pessoas querendo incriminar parentes tiveram dúvida entre falar ou se omitir.
A necessidade de investigação conforme os preceitos legais e de pena para quem atentou contra a Constituição é predominante entre os democratas, mas vozes no debate público, especialmente à direita e mesmo entre bolsonaristas que discordam da tentativa de golpe, falam em risco de denuncismo.
Num ambiente propício a denúncias irresponsáveis e até calúnias para atingir adversários ideológicos, haveria espaço --segundo a ótica dos mais alarmados-- para se instalar um clima comparável ao de estados de exceção, como a vigilância social da Alemanha nazista ou do stalinismo na União Soviética.
"Você esconde patriotas no porão?" foi a pergunta, em tom sarcástico, compartilhada ao longo da semana por influenciadores bolsonaristas sobre a notícia de que o diretório estadual do PT no Paraná disponibilizou um número de WhatsApp como "disk denúncia de terroristas paranaenses".
Mais de 2.500 denúncias foram recebidas em cerca de três dias, informou a seção local do partido, que disse ter feito uma triagem dos casos antes de enviar um dossiê aos Ministérios Públicos estadual e federal com 80 nomes, supostas provas e um pedido de investigação.
No canal do Ministério da Justiça, 30 mil relatos de possíveis participantes e financiadores chegaram por email em apenas um dia, após o órgão frisar que "qualquer informação ou pista é bem-vinda".
A cobrança pública se estendeu a empresas e órgãos públicos com funcionários suspeitos de ligação com o levante. Advogados da área trabalhista enxergam possibilidade de demissão por justa causa no setor privado. A Prefeitura de Belo Horizonte, por exemplo, soube via denúncias de um servidor flagrado com a turba em Brasília e o exonerou de um cargo de confiança.
Estudiosa da área de justiça de transição (conjunto de medidas legais para superar regimes autoritários, como ditaduras), a professora da UnB Eneá de Stutz e Almeida avalia como legítima a pressão pela responsabilização dos criminosos, desde que nos limites da lei e com direito de defesa.
O clamor já aparecia no grito de "sem anistia", ouvido na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para se referir ao governo Bolsonaro e ampliado para abranger os extremistas do quebra-quebra.
Para Eneá, é preciso diferenciar a coleta de denúncias pelos órgãos competentes, com respeito ao sigilo e às garantias constitucionais, e o esforço investigativo de pessoas comuns, com padrões menos rígidos.
"A execração pública é condenável, mas é algo da lógica das redes sociais e potencializado neste caso pelo fato de que os próprios invasores se exibiram orgulhosos em seus perfis", diz a doutora em direito.
Ela considera "saudável e didática" a participação popular na identificação, como caminho para reforçar que "a lei vale para todos e que não cabe conciliação quando há crimes". E rechaça analogias com regimes de exceção ao lembrar que no Brasil vigora o Estado democrático de Direito.
Setores da esquerda creditam ao governo Bolsonaro um estímulo recente à denunciação, com abertura para que iniciativas como o movimento Escola Sem Partido instalasse perseguição a professores por suposta doutrinação ideológica. Meios institucionais também foram usados nessa cruzada.
O tema foi ainda associado à pandemia de Covid-19, mas em outra chave: o esforço coletivo, em nome da saúde pública, para informar a governos aglomerações irregulares nas fases mais duras de isolamento.
Os riscos apontados no que se chama de cultura da desconfiança são a fragmentação social e o potencial uso do instrumento para atacar ou constranger desafetos pessoais, inclusive com mentiras.
Quando viu notícias sobre as milhares de denúncias contra os golpistas de Brasília, o advogado Felipe Fonte fez relação com "A Vida dos Outros", filme alemão de 2006 sobre um agente da Stasi (polícia secreta da antiga Alemanha Oriental) que começa a vigiar um casal de artistas e se envolve com a rotina deles.
"Não é que as pessoas não possam denunciar crimes eventualmente ocorridos, mas o problema da cultura do denuncismo é que ela abre portas para exageros, enganos e má-fé", diz Fonte, que é procurador do estado e professor de direito constitucional da FGV Direito Rio.
Ele defende que os órgãos oficiais têm meios adequados para fazer a investigação, facilitada pela fartura de indícios deixada nas redes. "Não é função do cidadão comum exercer esse papel de agregador de denúncias", segue, citando o ambiente carregado politicamente e a cultura do cancelamento como agravantes do cenário.
Fonte, que faz ressalvas a decisões recentes do STF e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) no campo da liberdade de expressão, diz que a tentativa de golpe é inadmissível e deve ser respondida com processos judiciais céleres e rigorosos, "para que isso jamais se repita".
A sanha da denunciação, a seu ver, pode ser prejudicial por acabar sobrecarregando ainda mais o Judiciário, com ações de reparação movidas por pessoas acusadas erroneamente no tribunal da internet. "Quem denuncia precisa ter responsabilidade para não virar alvo depois", observa.
O secretário nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, que é vinculado ao Ministério da Justiça da gestão Lula, diz à reportagem ser descabido falar em denuncismo. Para ele, a mobilização popular é uma reação à altura do momento de maior risco institucional do país desde a redemocratização.
"Não dá para frear o ímpeto da sociedade civil, principalmente diante do fato de grande parte dos criminosos ter exposto o rosto, de procurar as autoridades para apresentar denúncias. Isso é um auxílio ao país. Não vejo nada de errado, muito pelo contrário. Fortalece a democracia", afirma.
Segundo Botelho, o trabalho dos órgãos envolvidos na apuração se baseia nos direitos e garantias fundamentais de todos, inclusive golpistas. "Ninguém está sendo investigado por sua ideologia, mas pelos crimes que foram praticados. Não é perseguição política. É caça aos criminosos."
O secretário descarta ainda prejuízo à tentativa de pacificação da sociedade expressa por Lula. "O Brasil precisa se pacificar dentro do campo democrático. Divergir sobre posição ou programa é normal, mas tentativa de golpe, não. Harmonizar o tecido social não significa ser leniente com essas pessoas."