População gorda expressa necessidade de políticas públicas de acesso
No ‘Dia do Gordo’, Feira de Moda Plus Size (JF Plus Size) propõe reflexão sobre ações anti-gordofobia em Juiz de Fora
A origem do Dia do Gordo, lembrado no dia 10 de setembro, é vaga, imprecisa e diz pouco sobre o que a população com corpos maiores precisa. Inicialmente, a data parece ser só mais uma forma de discriminar as pessoas gordas. No entanto, há iniciativas importantes que ressignificam esse rótulo, como ocorreu em Recife (PE), a capital que institui o Dia de Luta contra a Gordofobia por meio da Lei 18.831 e estabeleceu a Lei 18.832 que trata de medidas para assegurar a proteção e inclusão da pessoa gorda nos estabelecimentos de ensino. A JF Plus Size, que chega a sua 6ª edição, destinou espaço para a reivindicação a respeito de políticas públicas voltadas para a população gorda, ao longo deste sábado (10).
“A gente já deu o primeiro passo na moda, por mais que a gente cresça como pensamento de que a moda é futilidade, quando você tem o corpo gordo, a moda é uma questão de dignidade”, pontua a idealizadora da iniciativa, Kalli Fonseca. Sem as roupas, as pessoas gordas são impedidas de trabalhar e de estar em muitos espaços da sociedade. Porém, é preciso pensar e seguir para o próximo passo. “
“Hoje, a pessoa gorda já tem uma autoestima legal, agora está se movendo na busca por Direito. Até para isso, precisamos das roupas e da autoestima. Não adianta ter a lei que diz que você não precisa passar na roleta, se aquilo for algo que cause um transtorno. Se aquilo te destrói por dentro, se você não está preparado, ou não sabe lidar com aquela situação”, considera Kalli. Para ela, nesse momento em que tomamos contato com as propostas dos candidatos à eleição, é muito importante estar atento aos programas que incluam atenção para corpos gordos.
“Para falar a verdade, são raras as propostas, mas é possível pensar em medidas que se adequam mais às nossas necessidades. Pode ser que o programa de governo não tenha nada específico para gordos. Mas políticas públicas que são ideais para Pessoas Com Deficiência (PCDs), muitas vezes nos atendem.” Ela exemplifica, com a obrigatoriedade de banheiros equipados para PCDs. “É muito mais confortável, permite uma liberdade maior, dá a certeza de que você não vai ficar agarrado porque as portas costumam ser ridiculamente pequenas.”
Kalli comenta que é essencial que mais candidatos possam aprender sobre essa pauta, porque é uma parcela significativa da população. “Somos mais de 50% e, talvez, uns 20% da população, que realmente têm necessidades especiais. Se você obriga os bares a ter 20% das cadeiras próprias para atender o público gordo, você não impede nenhum magro de se sentar. Ninguém sai perdendo.”
O acesso à saúde, que costuma ser um dos pontos mais cobrados das pessoas gordas, é dificultado pela falta de equipamentos que consigam atender adequadamente as pessoas gordas maiores. “Estamos em uma obra extraordinária, que é o Moinho. Lá em cima tem um coworking com 60 cadeiras que não foram pensadas para corpos gordos. Podem até questionar se essas cadeiras são mais caras, mas esse não é o ponto. É a falta de alguém que possa pensar nesse público. Por isso, precisamos de pessoas gordas em todos os lugares: engenheiras, arquitetas,administradoras, e outras profissionais que possam alertar para esse tipo de necessidade.”
Barreiras vencidas e barreiras a vencer
Movimentos como o ‘Body Positive’, importantes para a naturalização da presença dos corpos considerados ‘fora do padrão’ nos espaços, só são possíveis hoje, porque muitas pessoas colaboraram criando espaço antes. Mas ainda é necessário garantir o acesso de maneira formal. “Não temos o que comemorar no dia do gordo. Tramitar leis alinhadas com a luta antigordofobia é fundamental. Tem muitas medidas simples que podem ser tomadas. Nas escolas falam sobre o combate às drogas, sobre preservação ambiental, que são temas importantes. Por que não falam que ter um corpo gordo é normal?”, questiona Kalli Fonseca.
Para a proprietária da marca Tiçámpê, Sandra Costa, a mudança de ponto de vista é essencial para que os corpos gordos, sempre vistos como doentes, possam deixar de ser patologizados. “Tenho uma sobrinha que é PCD. Quando você tem alguém próximo, conseguimos entender melhor. É muito natural do inconsciente coletivo associar os PCDs ao coitadismo. Já o gordo, é visto como vagabundo, preguiçoso, aquele que come para caramba. Mas conhecer a realidade ajuda a mudar esse olhar.”
A empresária relata que a maioria esmagadora das pessoas gordas coleciona histórias traumáticas. Ela não conseguiu fugir desse padrão. "Fui bulímica, cheguei a pesar 48 kg, porque um professor meu me chamou na frente da turma de 47 alunos falou: 'uma menina branca, dos olhos claros, com precedência social, mas nunca vai ser uma pessoa de sucesso, porque é gorda'. Detalhe: era uma turma de Direito. O professor ministrava a disciplina Direitos Humanos".
Sandra explica que os problemas começam pela criação dos pais, que costuma passar por construções estruturais pautadas pela gordofobia. “Nossos pais, nossos avós sempre falam: ‘Ah, mas você é tão bonita! Emagrece!’, ou “Filha, assim você não vai se casar''. Isso condiciona o nosso corpo a vida toda.”
Sandra conta que, durante a pandemia, trabalhava de 12h a 14h por dia. Um dia, ela ouviu a mãe falando no telefone: “A Sandra está trabalhando muito, mas está tão gorda”. Foi a primeira vez, em 37 anos, que ela conseguiu chamar a atenção da mãe.” Você está me vendo trabalhar 12h, 14h por dia. Meu corpo é um fator limitante? Ela respondeu que não. Aí eu disse: ‘Então, para de atribuir a mim uma característica que te incomoda'. E, a partir daí, ela viveu uma virada de chave.”
Conversas difíceis, como essas, costumam demorar a acontecer. “Especialmente sem que a gente perca a razão, chore, porque engolimos tantas coisas, que quando jogamos para fora com outras pessoas, jogamos sem razão, porque estamos cheios de tudo aquilo”, afirma Sandra. “É muita violência. Essas meninas hoje têm um caminho aberto, que foi aberto por nós, que passamos por muito sofrimento para conseguir o mínimo”, acrescenta Sandra.
E é insistindo na mensagem e reiterando a mensagem, que as barreiras começam a ser superadas. A Prefeita Margarida Salomão esteve no evento e conversou com os organizadores. Embora nenhuma agenda oficial tenha sido formalizada, houve escuta e uma abertura para o diálogo sobre o assunto, mais um passo na direção do acesso, gesto raro entre as lideranças políticas, que segundo Kalli, não costumam demonstrar interesse verdadeiro pelo tema.
Abordagem sem preconceitos
Um dos principais impedimentos para que pessoas gordas tenham acesso é a patologização desses corpos. É comum o relato de profissionais da saúde que resumem o tratamento dado a pessoas gordas ao peso. No entanto, segundo a nutricionista e terapeuta nutricional Ariele Sousa, é preciso aprofundar essa abordagem. “Hoje temos vários estudos que mostram essa questão do obeso metabolicamente saudável. A gente consegue ver pessoas obesas que têm exames com taxas controladas, que têm boa saúde, ou seja, o corpo da pessoa, sua aparência física, não tem uma relação direta com a saúde. Porque saúde, no sentido mais amplo, inclui o bem estar físico, mental, social, não é só a ausência de doenças.”
Ela afirma que o critério do corpo, ou o julgamento, a partir da forma que ele tem não é suficiente. “A ciência já diz que não é bem assim. Há muitas pessoas magras que não estão bem mentalmente, estão com exames alterados. Precisamos desmistificar, parar de patologizar o corpo gordo como um corpo doente.”
A principal tendência é a associação errônea de que o estado da pessoa gorda é devido a falta de força de vontade ou desleixo. “As pessoas gordas são as que têm mais força de vontade, porque já tentaram de tudo, dietas, remédio, elas não conseguiram não porque fracassaram, mas porque não são os melhores métodos para elas. Existe uma outra forma da gente se cuidar. A saúde integral abrange todos esses aspectos físicos, emocionais e mentais. Precisamos ter um olhar mais carinhoso e mais gentil para essa população.”
Outro ponto importante, conforme Ariele, é aceitar o corpo e saber que todos os corpos, independente do tamanho, podem ser saudáveis. Além disso, nenhuma pessoa maior não precisa passar por essas dificuldades sozinha. “ Há profissionais gordofóbicos sim, mas tem profissionais que não são. Então, vamos buscar a ajuda desses profissionais, que podem caminhar junto com você e tornar esse processo mais gentil, mais tranquilo, sem pressão, porque as pessoas gordas já sofrem pressão demais da sociedade. Ter essa rede de apoio é super importante.”