Caminhada que nasce da inquietação: mulheres movimentam a luta e voltam a ocupar as ruas de Juiz de Fora no oito de março
Com o mote: "Pela vida das mulheres, em defesa da democracia, dos direitos e contra a fome", as mulheres chamam a sociedade para avançar na garantia de direitos e valorização da classe trabalhadora
As mulheres não pararam durante a pandemia de Covid-19. Dentro e fora de suas casas, elas permaneceram em atividade, movimentando as engrenagens de toda a sociedade. Em 2023, em uma nova realidade, as mulheres, que se mantiveram em posição de luta durante todo esse período, voltam a ocupar as ruas e a construir a mobilização 8M em encontros presenciais e diante de muitos desafios.
O ato neste 8 de março tem concentração a partir das 17h no Parque Halfeld, de onde as mulheres sairão em caminhada pela Avenida Rio Branco, descerão a Rua Mister Moore, seguirão pela Avenida Getúlio Vargas, avançarão pelo Calçadão da Halfeld, por onde retornarão para o Parque Halfed. Após a marcha, será realizado um Festival Cultural, que contará com: Muvuka (cortejo durante a marcha);Palhaçada à Vista: Chimbica, Chuchuca, Nanoka, Pan e Zureta; XotaEfe;Ciça Liberdade; MC's e poetas Joyce Mirella, Nalu Gonzaga e Sophia Bispo; Ingoma; Sandra Portella & Charmosas do Tamborim.
“Vivemos quatro anos de retrocesso em algumas conquistas, ainda que não as necessárias para uma grande transformação, que a gente havia conquistado. Houve um trabalho sistemático para quebrar o avanço das mulheres, para recriar uma narrativa da mulher subserviente, para quebrar a nossa ação no sentido de desenvolvimento profissional, de garantia de mesmo salário”, contextualiza a professora de História, Lucimara Reis, militante do Coletivo Pretxs em Movimento e do Fórum 8M/Juiz de Fora, doutoranda em Serviço Social pela UFJF.
Nessa conjuntura, como ela frisa, não houve retrocesso apenas do ponto de vista dos direitos das mulheres, houve impacto em muitas áreas, entre elas, as questões raciais. “Houve um incentivo e uma liberação para o racismo enrustido que a nossa sociedade tem, premiando, investindo e alçando a patamares de espaços de poder pessoas com esse tipo de visão. Abrindo espaço para o agronegócio, para a precarização ainda maior das relações de trabalho.”
Vencer esse período, de acordo com Lucimara, trouxe a possibilidade de pensar um novo processo, que não se dedique a restaurar o que havia antes, mas que se proponha a criar uma nova estrutura. ”É preciso que a gente retome as coisas em outros moldes. A subida da rampa na posse foi muito simbólica. Não houve quem não se emocionasse com aquele momento. Mas é preciso transformar aquele simbolismo em realidade. A gente sabe que o nosso estado de direito é um estado de direito para algumas pessoas. Para grande parte da população, o Estado de Direito não existe. A democracia é um conceito muito abstrato. Como é que a gente vai falar de democracia com quem não tem comida, não tem saneamento básico, não tem moradia, quem não tem trabalho digno, quem vive na pele todos os dias os efeitos do racismo, para as mulheres que não podem andar nas ruas?”, questiona.
Por isso, para Lucimara, é urgente avançar. “O desafio continua grande, continua alto, porque as nossas perspectivas e os nossos objetivos são altos. A questão aqui não é uma luta de mulheres terem direitos iguais aos dos homens, apenas. Avançar pelo direito das mulheres é avançar pelo direito da classe trabalhadora na direção de uma sociedade nova. A gente trabalha pela emancipação do ser humano e das formas de trabalho que são extremamente expropriadoras e exploradoras do trabalho. Só existe 1% vivendo em um mar de dinheiro que nós não conseguimos nem imaginar. E eles nem sequer conseguiriam gastar em três, quatro gerações o que acumularam, porque existe a maior e absoluta quantidade de pessoas vivendo em condições indignas.”
Agora, com a possibilidade do contato olho no olho e, acima de tudo, com a oportunidade de oferecer escuta e levar conhecimento e sensibilização, a ação coletiva conta com uma programação diversa, que inclui a pluralidade e complexidade das demandas enfrentadas por elas, agravadas pelas muitas crises que afetam o país. Que pode ser acompanhada por meio das redes sociais do Fórum 8M.
“A construção do 8M deste ano em Juiz de Fora conta com a participação de mais de 50 organizações. Coletivos feministas, entidades sindicais, partidos políticos, mandatos parlamentares. Sem dúvida, a combinação entre pandemia e um governo genocida no Brasil, ambos impactando de forma mais acirrada grupos com vulnerabilidades politicamente induzidas, representou uma conjuntura cruel”, avalia a professora de Direito Constitucional do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da UFJF, Joana de Souza Machado, que também é coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Assessoria Jurídica em Violências Institucionais e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFJF (LAVID-UFJF) e , atualmente, diretora da APES (seção Sindical do ANDES-SN).
Não poder ocupar as ruas quando mais se somavam razões para intensificar a luta, segundo Joana, foi muito difícil. “Não à toa a construção do 8M mobilizou tantas e diversas mulheres. Somos sobreviventes e temos urgência em honrar aquelas que não estão mais conosco, na tarefa permanente da memória, verdade e justiça.”
Para a professora de Direito, algo que marca profundamente esse momento é a urgência da luta contra a precarização da vida. “Não saímos da luta durante a pandemia. Construí-la, porém, olho no olho, é algo que nos humaniza e, justamente, por isso, nos fortalece”, afirma. “Compartilhamos vivências, avaliações e fomos construindo conjuntamente as pautas, que certamente nos demandam atuação contínua”, complementa.
Membro do fórum feminista 8M, a diretora da pasta de mulheres do Diretório Central dos Estudantes da UFJF, Leiliane Germano, que também é assessora legislativa e membro do Conselho da Promoção da Igualdade Racial, considera que a caminhada para o ato em 2023 carrega a responsabilidade maior de mobilizar as mulheres após o período doloroso da pandemia.
“Tantos desmontes das políticas de segurança e assistência a nós. Período que não foi possível nos reunirmos e que várias lutas e obstáculos atravessaram nossa realidade de um jeito jamais visto. Estamos indo para esse ato com o coração cheio de esperança e alegria ao retornamos às ruas, mas também com esse peso de mobilizar e debater todas as demandas que as mulheres trabalhadoras possuem como diferença salarial, desemprego, fome que assola várias famílias chefiadas por mulheres, saúde pública e a necessidade de ampliação nos equipamentos de atendimento e proteção às mulheres”.
Luta e construção coletivas
Para a professora Lucimara Reis, muitas vezes, o que leva as mulheres a buscar os movimentos é a inquietação e a vontade de partilhar ideias e promover transformação. . “As mulheres fazem uma leitura da realidade e percebem que há algo de errado. É comum que elas procurem locais em que a inquietação possa ser partilhada, e se torne algum tipo de ação ou signifique algum tipo de resposta.”
No início, o Fórum 8M reunia coletivos e organizações feministas, mas as participantes começaram a perceber que muitas mulheres não faziam parte de nenhum movimento, ou fizeram por algum tempo e saíram por alguma questão. ”Acho que a novidade para que essas mulheres chegassem ao Fórum 8M foi a forma de organização, que é horizontal. A gente não tem uma direção geral, atuamos por meio de grupos de trabalho, por afinidade de temática e isso traz um sentido diferente de organização, em relação ao que tradicionalmente os movimentos sociais têm.” Ela atribui entre outros motivos a esse modelo o fator de acolhimento que as mulheres sentem nesse espaço: "As mulheres se sentem ali participantes, de igual para igual com as outras”.
Antes de qualquer outra coisa, no entanto, Lucimara destaca que, para participar, é preciso ser feminista, antirracista e anticapitalista. “As vertentes que por ventura você tenha, as organizações que porventura que você faça parte, que comunguem dessa visão de mundo, sempre são bem-vindas. Temos muitas mulheres independentes no 8M que não fazem parte de nenhuma organização ou coletivo.”
Outro aspecto importante do Fórum, como aponta Lucimara é a ausência de burocracias. “Não perde a relevância, a organicidade e a seriedade, mas traz um arejamento nas formas tradicionais de organização. Essa forma de organização horizontal, onde o coletivo decide. E essa forma de trabalhar em Gts, entendendo que em cada momento da vida, em cada fase, você tem maior ou menor possibilidade de estar militando.” Isso significa que, mesmo que a pessoa não possa estar presente, pode ainda contribuir de outras formas, como repostando os conteúdos em suas redes sociais. “Entendemos que toda a possibilidade de mobilização é válida, que toda ação é válida. Principalmente, entre as mulheres que vivem jornadas duplas e triplas.”
Como reforça Leiliane Germano: “A luta das mulheres por direitos é historicamente coletiva”. Há um acompanhamento de todas as pautas que tangem a vida das mulheres na cidade. “ Estamos em diferentes espaços, desde conselhos municipais como o Conselho da Promoção da Igualdade Racial até na realização de reuniões dentro de bairros diversos da cidade. Cada encontro é um exercício de escuta e essa escuta gera ações para debater tais assuntos que surgem nos encontros.” A membro do Fórum 8M ainda reforça que essa presença é reforçada pela mobilização de contatos e espaços, que formam uma rede de atuação. Ainda há, como ela frisa, muitos direitos que precisam ser cobrados e muitas leis que devem ser colocadas em prática. Com o avançar dessa rede, como ela pontua, as mulheres somam pequenas vitórias a favor de todas.
Para as mulheres que desejam iniciar a participação nas mobilizações, como orienta Leiliane, há vários espaços que podem ser portas de entrada. Seja por meio de movimentos sociais, como o Fórum 8M e muitos outros, reuniões de bairro, organizações feministas com as quais se identifiquem e locais em que possam ser acolhidas e debater demandas. “O Fórum 8M faz sempre atividades abertas, então deixo esse convite para conhecer nossa organização. O mais importante é: não fique sozinha, vem construir a luta coletiva. E quando digo luta nem é tá sempre na rua ou em atos, mas criar espaços dentro da sua comunidade mesmo a fim de poder debater as demandas que aquele grupo de mulheres possui e precisa resolver.”
#EuParo
Entre as ações previstas dentro do 8M o "eu paro" mobiliza a greve internacional de mulheres. Isso envolve uma conversa com sindicatos e organizações, que de acordo com Leiliane Germano, têm o intuito de que as profissionais possam parar nesse dia e irem para o ato ou pararem nem que seja um pouco do tempo de expediente.
“A greve internacional de mulheres visa debater o sexismo no mercado de trabalho, a sobrecarga das mulheres trabalhadoras. Buscamos como desdobramento o olhar da sociedade para essas questões. Para a necessidade de igualdade salarial, respeito às trabalhadoras, divisão de tarefas sem sexismo, combate ao assédio no ambiente de trabalho, entre outras” diz Leiliane.
Joana Souza Machado completa, explicando que o verbo parar inclui as diversas frentes de trabalho. “Tanto o considerado produtivo pela sociedade capitalista (mal ou bem remunerado), quanto o trabalho de reprodução da vida (tarefas de cuidado), essencial e ao mesmo tempo invisibilizado por essa mesma sociedade.”
Segundo Joana, a função pedagógica de uma greve geral de mulheres, sintetizada na campanha “Eu Paro”, é a de escancarar, por meio de sua suspensão (ainda que simbólica), como a força de trabalho e intelectualidade femininas são pilares fundamentais da sociedade. “A função política é de somar forças na denúncia e combate do que nos mata, silencia, oprime, como fome, falta de trabalho, violências de gênero diversas e crescentes, falta de direitos, falta de justiça, fascismo. Daí o mote: 'pela vida das mulheres, em defesa da democracia, dos direitos e contra a fome'".
Pavimentando o caminho
Joana reforça que a luta das mulheres transcende em muito o simbolismo do 8 de março e se compõe de diversas ações, como a que ocorreu na segunda-feira (06), com a realização de uma reunião na Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher (DEAM), para aprofundar o diálogo com equipamentos de segurança pública, buscando fortalecer a rede de proteção de mulheres vítimas de violência. “Neste dia 8 ocuparemos as ruas, marcharemos juntas (es) e renovaremos as energias com o potente festival cultural que compõe a nossa programação, para seguirmos na nossa luta ainda mais unidas e fortalecidas.”
Para além das ações, Lucimara ressalta que é preciso pensar nas formas de mobilização, de organização e arejar os movimentos sindicais e sociais. “Não faço parte do coro que diz que esses movimentos não fazem parte dessa nova conjuntura. Ao contrário, acho que eles são fundamentais. Eles fundamentam as lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores. Mas é preciso entender a necessidade de arejar esses movimentos. E o movimento feminista, por exemplo, traz esse arejamento, essa discussão de que é preciso perceber que essa classe trabalhadora não é uma, ela é diversificada, homogênea, fruto do processo de construção histórica. Tudo isso precisa ser pensado, posto em agitação e ao mesmo tempo, a mobilização precisa ocorrer.”
Lucimara considera que transformar o imaginário em real requer que a aliança para fortalecer a democracia depende que a balança tenda para o lado da classe trabalhadora e, por isso, ela precisa ser fortalecida. “ A classe trabalhadora só vai estar mais forte com os movimentos sociais mais fortes. E para ter os movimentos sociais fortes é preciso que os movimentos das mulheres e de minorias políticas, que são maiorias contingenciais, estejam organizadas, trabalhando, refletindo, tendo espaços de voz, proporcionando espaços de escuta, para chegar aos espaços de poder”, conclui.