As outras pessoas logo atr?s certamente se sentem incomodadas, mas elas t?m com quem conversar. Desse modo, fingem que n?o est?o nem a? para o agarramento sem nenhum inc?modo com o voyeurismo a que est?o expostos. Para mim ? imposs?vel ignor?-los: eles est?o a um palmo de meu nariz. S?o pessoas de boa apar?ncia, diria que pertencentes a classe m?dia pra cima, bem produzidos nas roupas, possivelmente universit?rios ou quase l?.
O beijo era de cl?max sexual, e mesmo desviando o olhar, me chegavam aos ouvidos os ru?dos, causando-me, devo confessar, uma certa n?usea.
Contive o ?mpeto de dirigir-me a eles assim: "Desculpem-me, sem querer interromper, mas j? interrompendo, aqui est? uma grana para que voc?s se dirijam ? uma su?te do motel mais pr?ximo, onde poder?o se sentir mais ? vontade nessa t?rrida demonstra??o de amor."
Um pouquinho mais ? vontade ali, no sagu?o do Palace, seria um desnudar o outro e rolarem pelo ch?o.
A express?o beijo antropof?gico n?o ? minha. Ouvia-a, certa
madrugada, casualmente, pronunciada por nada menos do que Tom Jobim, em uma
mesa vizinha na antiga Churrascaria Plataforma, no Leblon. Ele se referia,
com ironia, mas em tom de censura, ao modo como os atores e atrizes se
beijavam nas novelas de TV, j? naqueles tempos, em 1987, por a?. Ilustrando sua admira??o, Jobim lembrava os beijos
dos antigos filmes de Hollywood que, quando come?avam a ficar calientes, a
c?mera se afastava, para enfocar o fogo na lareira, numa sutil refer?ncia ?
evolu??o da cena de amor, em respeito ? sensibilidade dos espectadores,
poupando-o de envolv?-los na intimidade sexual dos protagonistas. As novelas s?o as principais divulgadoras e incentivadoras dos beijos
antropof?gicos em p?blico. Eles se repetem exaustivamente, de forma
sensacionalista, na medida em que nada acrescentam ao desenrolar das tramas
e, geralmente, em cl?max sexual (vale insistir na express?o), tornando-se
banais, enfadonhos, n?o importa a hora e para que tipo de espectador est?o
sendo exibidos. Assim, se tornou comum, em qualquer lugar - nas ruas, em condu?es
coletivas, nos bares e restaurantes apinhados de gente e mesmo na porta dos
col?gios - a troca de car?cias entre adolescentes, sem um pingo de vergonha
de estarem protagonizando uma cena que a eleg?ncia e as boas maneiras
recomendam que se desenrole entre quatro paredes, protegidos de olhares
incomodados ou de avidez de testemunhas ao acaso. ? imposs?vel a terceira
alternativa, a da indiferen?a, por mais liberal que o observador se
classifique para entender a coisa como normal. Voltemos ?s cenas do quase sexo expl?cito em p?blico. Por mais que os
jovenzinhos se sintam alinhados, bonitinhos, com a apar?ncia bem cuidada nas
academias, a roupa de griffes caras, o beijo espalhafatoso, escandaloso -
como o do casal na fila do cinema ? minha frente - os remete a um
comportamento pr?ximo ao dos animais, que praticam o sexo ?s escancaras, por
puro instinto animal - v? l? a redund?ncia. Serve para refor?ar a id?ia de
que os seres racionais s?o devedores de um respeito aos que os rodeiam, que
os irracionais n?o possuem. Ser? que estou exagerando e me expondo ao rid?culo de uma cr?tica social
ultrapassada? Fa?o a pergunta, ap?s reler o que foi exposto a? em cima,
quando me contive a usar a express?o "atentado ao pudor", pois a? seria
demais.... A
troca de olhares envergonhados prossegue at? que o garotinho desembrulha um
chocolate, d? uma mordida, a garotinha se chega mais, e o que acontece? Um
beijo na boca e n?o, como eu imaginava, o garotinho cedendo um pedacinho do
chocolate a ela. Repito: s?o duas crian?as de dez anos. Bem, depois do beijo antropof?gico na fila do cinema, e a do beijo adulto do
menininho e da menininha, este a pretexto de aumentar a venda do chocolate,
come?o a ter a certeza de que quem n?o t? nem a? - isto ?, conectado com o
mundo atual - sou eu, e que preciso, urgentemente, de reciclar minhas id?ias
e engavetar pudores ultrapassados. Ou n?o?
Minha amiga psic?loga, socorro!