Jô Soares se vestia para influenciar sem seguir tendências, diz seu alfaiate
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Na última vez que o alfaiate Maurício Messias, de 61 anos, encontrou seu cliente mais famoso, ouviu um pedido incomum nos quase 20 anos de idas a seu apartamento no bairro paulistano de Higienópolis. Jô Soares, beirando os 80 anos, não queria ajustar mais um dos ternos no estilo britânico que mantinha no armário, hábito conservado até sua morte, na última sexta-feira, mas sim cortar calças da moda.
Seriam de tecido composto com elastano, completamente fora do padrão de bases puras italianas e inglesas que o acompanharam por toda a vida, e, também, seriam de barras curtas e corte justo "Jô, não esquece que você é gordinho e a canela vai destoar do resto do corpo", disse o alfaiate, a quem o apresentador respondeu apenas com um "não importa, quero muito". Feito.
Messias não revela as medidas do cliente à época -e de nenhum, aliás, por achar "uma indiscrição" - nem o ano exato, porque esses detalhes não vêm à sua memória. Na ficha, consta apenas a entrega, 15 de março, de "talvez quatro, cinco anos atrás". Lembra bem, no entanto, que daquele encontro à noite, depois das dez horas, como Jô sempre pedia para ser devido à agenda complicada, saíram duas calças.
"Achei curioso, porque ele parecia querer modificar um pouco o estilo. Mas, olha, Jô não era tradicional como muita gente acha, se aventurava e ousava bastante no dia a dia, com roupas mais esportivas", conta o costureiro.
Messias nunca perguntou como Jô descobriu seu número, mas foi num dia qualquer, no início dos 1990, que recebeu a ligação do apresentador querendo informações sobre como um personagem britânico usaria flanela, um xadrez típico cujas linhas estampam jaquetas e costumes do Reino Unido.
Ele logo saberia que a aula informal foi usada para moldar o guarda-roupa da caricatura do detetive Sherlock Holmes esculpida pelo escritor no best-seller "O Xangô de Baker Street", lançado em 1995.
Daí em diante, os encontros nunca pararam e Messias virou espécie de costureiro oficial, a quem Jô Soares recorreu para manter vivo o próprio guarda-roupa, repleto de ternos Minelli, marca da família homônima de origem italiana que por muito tempo patrocinou os looks do apresentador.
Na primeira leva, recorda, foram cinco, e, ao sabor do vaivém das medidas corporais, o alfaiate foi acionado pelo cliente para outras dezenas, fato que o torna memória viva da construção do personagem de proporções amplas, simpático e sempre elegante idealizado pelo apresentador.
"Ele nunca jogou fora uma roupa para colocar outra no lugar, nunca quis mudar para seguir uma tendência. Definitivamente, não era alguém que seguia os outros, porque, como todo artista, procurava influenciar", afirma Messias.
Devido à predileção pelo estilo britânico, Jô "preferia os jaquetões transpassados, com botões duplos, e jogava bastante com as cores". O alfaiate afirma que os diversos padrões quadriculados, marcantes nos looks do apresentador, não eram escolha aleatória.
"O xadrez salientava a gordura, que fazia parte da imagem que ele queria passar. Sempre preferiu o [xadrez] príncipe de Gales, porque seguia o padrão britânico, e os listrados, porque também gostava muito da alfaiataria italiana."
O respeito pelos cortes clássicos e o interesse por acessórios que nos anos 2000 saíram do radar das tendências, mas que, nesta década, voltaram à baila, a exemplo dos prendedores metálicos de gravata, levou Messias ao concorrido sofá do cliente em 2012.
Exibida em novembro daquele ano no Programa do Jô, na Globo, a entrevista girou em torno do uso das gravatas. Como exigia a discrição habitual da dupla, nada sobre a relação próxima de corte e costura dos dois virou tópico na conversa.
À época, Messias ainda mantinha seu ateliê na rua Augusta, em São Paulo. Depois, mudou para o bairro do Paraíso e, agora, recebe clientes no espaço em Sorocaba, no interior paulista, mas volta e meia viaja à capital e a outros estados para atender os assíduos em casa.
Não revela os valores dispensados por eles, é claro, mas conta que um costume completo, sob medida, não sairia por menos de R$ 8.000 e consumiria algo próximo a dois meses de trabalho. Aos novos, ainda usa Jô como referência de estilo, mantendo fotos e reportagens com ele na parede.
A memória mais íntima, porém, guarda apenas na lembrança. Enquanto esperava pelo cliente na biblioteca do apartamento, ainda no primeiro encontro, decidiu olhar os livros expostos e, lembra, percebeu "o quanto era ignorante".
Qualquer tensão foi logo dissipada quando Jô Soares, "uma das pessoas mais simpáticas e generosas que conheci, muito diferente da imagem de arrogante que pintavam", entrou na sala.
De pronto, o apresentador olhou a imagem esguia do alfaiate e não acreditou que o costureiro pudesse cortar os panos para ele. "Pô, mas você é magrelo", exclamou, levando de volta do alfaiate a piada que selaria a parceria de décadas. "É, Jô, mas minha cabeça é gorda."