'Santa Evita' chega à TV esvaziada da crítica e do humor originais
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - A mais famosa mulher argentina, Eva Perón (1919-1952) já teve interpretações clássicas, como a de Nacha Guevara em "Eva, O Grande Musical Argentino" (1986), e vergonhosas, como a de Madonna no piegas "Evita" (1996), dirigido por Allan Parker. Na recém-estreada série "Santa Evita", a reencarnação da personagem histórica por parte de Natalia Oreiro é uma das melhores coisas de uma produção que falha na adaptação do livro homônimo de Tomás Eloy Martínez (1934-2010).
Lançada em 1995, a obra de Martínez vendeu mais de 10 milhões de exemplares. Embora o escritor e jornalista houvesse deixado claro no subtítulo que se tratava de um "romance", a projeção da narrativa foi tão ampla que, para muitos, até hoje, se trata de uma história oficial.
Parte do que está na obra é mesmo verdade, e muito está baseado nas longas horas de entrevistas que ocorreram durante três dias, em Madri, quando Martínez visitou o general Perón enquanto este estava exilado, depois de ser tirado do poder por um golpe militar. Porém, o escritor também inventou passagens e diálogos na construção dos personagens.
Portanto, Martínez misturou no livro dados históricos, informações de primeira mão de Perón e usou sua imaginação em vários episódios, que de tão bem desenhados, ficaram na memória de muitos argentinos como se fossem verdade. Como Perón e Evita são mitos da história argentina, a tênue linha que divide realidade e ficção parece importar pouco.
O principal problema com a série "Santa Evita" é desviar-se do foco do livro. A novela conta a história de um corpo, o corpo embalsamado de Eva Perón, que foi sequestrado pelos militares quando houve o golpe militar de 1955, obrigando o general a partir para o exílio.
Apenas em 1971, quando Perón vivia na Espanha, ainda proibido de voltar à Argentina, é que lhe foi devolvido o cadáver. A partir daí, foi usado, segundo o que Perón contou a Tomás Eloy, em rituais comandados pelo bruxo e assessor pessoal de Perón, López Rega, para tentar "transferir" o encanto de Evita para a atual mulher do general, Isabelita, a quem, segundo ele, faltava a mesma magia da "defensora dos descamisados".
Na série, na tentativa de atrair um público mais amplo e internacional, talvez, conta-se mais a história de Evita do que as andanças do corpo pelo mundo. Assim, torna-se didática, novelesca e perde o tom sarcástico e a picardia com que Tomás Eloy Martínez, que não era peronista, tratava os acontecimentos e, numa leitura mais aprofundada, fazia a crítica da Argentina.
SANTA EVITA * *
Onde Disponível no Star +
Classificação 12 anos
Elenco Natalia Oreiro, Diego Velázquez e Francesc Orella
Produção Argentina, 2022
Além de Oreiro no papel de Evita, que transmitiu bem sua personalidade vaidosa e impetuosa, destaque-se a participação de Ernesto Alterio, que encarna o atormentado oficial a quem se dá a tarefa de sequestrar e esconder o cadáver embalsamado de Evita e suas quatro réplicas.
O coronel Moori Koenig era conhecido por ter uma paixão fetichista com Evita, antes e depois da morte. A mesma mulher a quem servira quando o general estava no poder, a quem espionara, a pedido de Perón, quando estava doente, e alguém cuja morte celebrou, pois a essa altura já estava associado aos militares que promoveram o golpe de 1955.
Há uma tentativa de emular a presença do olhar de Martínez na série, através do personagem de Mariano Vázquez, que é um jornalista que trabalha num jornal imaginário, "Crítica del Plata" e a quem é dada a tarefa de confirmar a ida do corpo de Evita a Madri.
Por meio do personagem que revive Tomás Eloy, abre-se espaço para contar como eram as perseguições e o sufoco da liberdade de expressão que ocorria nos anos 1970. O próprio escritor, mais tarde, seria expulso do país por ameaças realizadas pela Triple A --esquadrão da morte a serviço do peronismo.
A reconstrução de época e o uso de imagens originais de cenas de discursos e manifestações são muito bem usados e fazem de "Santa Evita" uma produção de agradar os olhos. Uma pena que tenha aberto mão do olhar inteligente e irônico de Tomás Eloy Martínez e preferido acentuar mais o caráter sombrio, levando a sério demais uma obra que o autor escreveu como uma burla aos argentinos.