Festival de Gramado esquenta serra gaúcha com filmes sobre Brasil em convulsão social
GRAMADO, RS (FOLHAPRESS) - Foi como que para se contrapor ao clima gélido da serra gaúcha, que chegou a ficar abaixo de zero, que os longas do 50º Festival de Gramado esquentaram o evento com suas alfinetadas políticas e denúncias sociais. Não só na tela, na verdade.
A temperatura subiu em discursos, debates e até no tapete vermelho, que de passarela com intenções glamorosas virou até cercadinho de apoiadores de Bolsonaro, que vaiaram e hostilizaram artistas que desfilaram por um dos mais tradicionais eventos cinematográficos do país.
Se por um lado a classe artística é abertamente identificada com a esquerda, ainda mais diante de um governo que declarou guerra à cultura, por outro Gramado é uma cidade em que mais de 80% da população escolheu eleger Jair Bolsonaro no segundo turno das últimas eleições.
Cervejas com seu rosto nas vitrines, cartazes a favor de sua reeleição e adesivos em carros mostram que nos últimos quatro anos pouco mudou. É engraçado, portanto, pensar que a cidade recebe um evento como o Festival de Gramado, que neste ano foi especialmente politizado, com uma seleção que denunciou o estado de convulsão social do Brasil de hoje.
Dos sete longas nacionais em competição, cinco se preocuparam em mexer em vespeiros como milícias, violência policial, racismo, aumento da pobreza, tortura, saudosismo da ditadura militar e, em confronto direto, a eleição de Jair Bolsonaro, no caso do queridinho da temporada "Marte Um" -mesmo que o faça de forma sutil, já que a sua sinopse é muito mais explícita do que o roteiro em si.
Entre os curtas, assassinato de povos originários e quilombolas, a gestão da pandemia de Covid-19 e o afrouxamento da legislação trabalhista pulsaram latentes. O tom de enfrentamento se repetiu em outras seções, até mesmo naquela destinada a longas estrangeiros, que ampliou o escopo para uma visão latino-americana desses temas -passou, por exemplo, pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile.
Com os ânimos aflorados às vésperas de mais uma eleição presidencial, parecia óbvio que a política estaria de mãos dadas com o cinema. Os organizadores do festival bem que tentaram eclipsar essa predisposição com um falatório vazio que impregnou a abertura do evento, na última sexta-feira.
Agradecimentos protocolares e repetitivos, que iam do governador do Rio Grande do Sul ao chefe da brigada de bombeiros, e que passaram ainda por um sem-número de ex-prefeitos de Gramado, tentavam vender uma ideia de que o festival seria isentão. Até mesmo o secretário do Audiovisual de Bolsonaro foi convidado a falar, numa sucessão de burocracias que obrigou a orquestra local a encurtar o programa que havia preparado.
Não foi o suficiente para acalmar os ânimos. Em todas as sete noites de sessões no Palácio dos Festivais, Bolsonaro foi atacado ou então Lula foi ovacionado, com gritos vindos da plateia ou de diretores, produtores e atores que iam ao palco apresentar seus trabalhos.
A seleção de filmes ainda se notabilizou por destacar o cinema negro, que nunca esteve tão em alta em Gramado como neste ano, seja em longas ou em curtas nacionais, e também produções de estados com pouca tradição cinematográfica, como o Acre.
Dessas duas mostras competitivas, os títulos mais ovacionados foram o longa "Marte Um" e o curta "Fantasma Neon", que já vêm com carreiras prolíficas fora do Brasil. O primeiro, sobre uma família que vê sua vida desmoronar em paralelo a mudanças nos rumos políticos do país, foi exibido em Sundance, enquanto o segundo, que denuncia a uberização do trabalho, foi premiado em Locarno.
"Marte Um" é centrado numa família negra e mostra um Brasil que ensaia uma melhora para todos e, mais especificamente, para seus personagens principais. Sua rotina, no entanto, vai discretamente se alternando com imagens do então novo governo Bolsonaro, nas televisões ao fundo.
Bem antes dele, no entanto, "A Mãe" já havia emocionado o público ancorado por uma atuação potente de Marcélia Cartaxo, premiada em Gramado em 2019 por "Pacarrete". Agora, ela vive uma mãe que busca o filho desaparecido, numa trama que destrincha as heranças violentas da ditadura militar na polícia e que dá espaço a Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, em cena.
Nele e também em "Noites Alienígenas", primeiro longa acreano exibido no festival, a guerra às drogas potencializa os problemas dos protagonistas. Nesse último caso, o roteiro denuncia a chegada de facções criminosas do sul do país na região amazônica. "É o crime por trás do progresso", diz um dos personagens a certa altura.
Já "O Pastor e o Guerrilheiro", que teve o tapete vermelho mais barulhento do festival e convidou José Genoino e Juca Ferreira para integrar sua comitiva, fez um ataque mais aberto às políticas de direita. A trama acompanha a filha de um coronel e torturador da ditadura, no final dos anos 1990, e alterna seu presente de luta estudantil com o passado de duas das vítimas do militar.
"Tinnitus", por sua vez, foi menos carregado de política, apesar de dedicar uma importante cena a semelhante desprezo pela ditadura iniciada em 1964. Os únicos dois longas que fugiram da tendência foram "O Clube dos Anjos" e "A Porta ao Lado", que não deixam de ter suas camadas políticas e ainda foram introduzidos por discursos fortes no Palácio dos Festivais.
Esta edição de 50 anos de Gramado chega ao fim neste sábado (20), quando os vencedores dos Kikitos serão conhecidos. A julgar pela seleção, é provável que as escolhas do júri e os discursos de agradecimento subam o tom político na serra gaúcha.