Mostra conta a história da arte reunindo gravuras de Picasso, Schiele e Munch
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 1515, o rei de Portugal dom Manuel 1º resolveu enviar uma lembrança ao papa Leão 10º. Dom Manuel convocou seus asseclas, ordenando que transportassem um rinoceronte de Goa, então colônia portuguesa, na atual Índia, até Roma.
E para lá rumou a besta, 1.400 quilos enjaulados num navio, deslizando em mar aberto até chegar ao rio Tejo, onde fez escala. Era a primeira vez, desde o império romano, que os europeus viam um rinoceronte.
Mas o desígnio do rei português não seria cumprido. Enfrentando uma tempestade, a embarcação naufragou, no norte da Itália, vitimando o rinoceronte, afogado no convés. O gravador alemão Albrecht Dürer não chegou a encarar a fera, mas, a partir de relatos enviados por comerciantes de Lisboa, imaginou como seria o animal. Idêntico ao rinoceronte que conhecemos hoje, o resultado espanta cinco séculos depois.
A xilogravura de Dürer integra o acervo do Museu Albertina, em Viena, proprietário da maior coleção de obras gráficas do mundo. Entre mais de 1 milhão de obras gráficas, 154 gravuras estão agora no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, incluindo "Rinoceronte", que se tornou uma obra mítica para os historiadores da arte. O traço preciso, que entalha a imagem no papel, engendra a um só tempo obra de arte e peça de comunicação, apresentando o animal para a Europa.
A mostra "O Rinoceronte: Cinco Séculos de Gravuras do Museu Albertina" conta a história da arte ocidental, abrangendo um período entre 1466 e 1991, com obras de Andrea Mantegna a Andy Warhol, passando por Matisse e Miró.
As peças chegaram ao Brasil em dois aviões e nenhum artista teve seus trabalhos numa mesma aeronave. Segundo os curadores, a queda de um avião representaria um prejuízo ao patrimônio da humanidade. Nas salas do Tomie Ohtake, as obras são penduradas em paredes espessas, com controle próprio de umidade e temperatura.
A exposição se organiza numa narrativa linear, partindo do Renascimento até a arte contemporânea. Assim, logo nos deparamos com o "Rinoceronte" e sua mensagem gravada acima no papel, contando em latim um pouco do périplo do animal. Se a verossimilhança atribuiu um valor sobrenatural à gravura, o artista empregou elementos de seu repertório para fabricar a carapaça do animal.
Com um traço reforçado nas pontas, ela tem a forma de uma armadura de cavaleiro medieval. Nas enciclopédias, Dürer é tratado antes como um mestre da pintura do Renascimento nórdico, sobretudo pelas dezenas de autorretratos que produziu, quase sempre exibindo a vasta cabeleira e o olhar hipnotizante. Mas, em vida, a aplicação das técnicas de perspectiva não se deteve às telas.
"Dürer odiava pintar e se reconhecia, antes de tudo, como um gravador", afirma Christof Metzger, curador-geral do Museu Albertina, que organiza a mostra em São Paulo. "Ele, afinal, não lidava bem com a ideia de fazer uma tela para um cliente."
As primeiras gravuras surgiram ainda no século 2º, na China, chegando à Europa 13 séculos depois. Ainda que o senso comum use o termo como sinônimo de desenho, a gravação se vale de inúmeras técnicas --xilogravura, calcogravura, litogravura, água-forte ou serigrafia-- para gerar uma imagem a partir de uma matriz.
Nesse sentido, a gravação carrega em si uma discussão ontológica. Ao contrário da pintura, essa técnica nunca prometeu a ideia de ser uma obra de arte única, o que a fez ter sido menos valorizada. Ao mesmo tempo, as gravuras sempre tiveram uma circulação mais rápida entre os países, alcançando mais espectadores e culturas.
"A calcogravura nos dias atuais está desaparecendo, morrendo", diz Metzger. "A xilogravura e a serigrafia ainda são comuns, mas poucos artistas são capazes hoje de gravar seus trabalhos em metal como antigamente."
Em "O Rinoceronte: Cinco Séculos de Gravura do Museu Albertina", voltamos à época em que a Europa fazia suas expedições pelo mundo, e a cartografia ganhava proeminência entre os gravadores, retratando o descobrimento de novas terras. Peter Bruegel, o Velho, registrou a monumental "Batalha Naval no Estreito de Messina".
O principal artista do Renascimento holandês visitara a península Itálica e, a partir de desenhos feitos ali, criou uma obra que evoca os conflitos entre cristãos contra o Império Otomano e, pelo simbolismo das caravelas, as grandes navegações europeias.
A mostra também ilumina figuras menos conhecidas da história da arte. Na pintura, pouco se ouviu falar do francês Claude Mellan, mas, entre os especialistas em gravura, ele é tratado como uma sumidade. Num dos seus principais trabalhos, "O Sudário de Santa Verônica", de 1649, Mellan retrata a face de Cristo, gravando a frase em latim "o um e único foi formado a partir de uma só".
O artista faz referência ao próprio procedimento. A partir do nariz de Cristo, ele traçou uma única linha em espiral que percorre todo o papel até formar o cenho daquele homem de olhar melancólico e coroa de espinhos sobre a cabeça.
Do período barroco, as obras de Rembrandt se impõem aos espectadores. O mestre holandês se valeu da água-forte para ampliar o leque de temas de sua obra pictórica. Além dos autorretratos, a gravura "Adoração dos Pastores com Lamparinas" impressiona pelo domínio do efeito claro-escuro, tão característico da época. No papel, a escuridão reina, mesmo diante dos feixes de luz irradiados pelas lamparinas.
Também são soturnas as obras do espanhol Francisco de Goya, o primeiro romântico. Nas gravuras, ele nos transporta ao seu reino de assombrações, retratando cenas de um pesadelo. "O sonho da razão produz monstros", diz a frase estampada na sua famosa obra, em água-forte, de 1799. No papel, um homem apoia a cabeça numa mesa de escritório, enquanto morcegos o perturbam, todos eles em revoada. Ao fundo, uma coruja e um gato arregalam os olhos, assustados.
Nas gravuras do norueguês Edvard Munch, ouvimos seu grito em cinco peças. Além de um autorretrato, a exposição apresenta duas mulheres, ambas de tez pálida e corpo lânguido. Sua versão da "Madona", feita entre 1895 e 1902, mais parece uma caveira com seus olhos fundos. O tronco, ademais, se retorce a partir do fundo preto, que se iguala a cor dos cabelos daquela mulher. Acima de sua cabeça, Munch produz ondas de azul-marfim, que entreveem raios de vermelho.
A mesma cor se torna fulgurante no retrato da "Mulher com Cabelo Ruivo e Olhos Verdes", de 120 anos atrás. Contra o fundo branco, a cabeleira cor de fogo parece desalinhada, expressando talvez o estado mental da retratada. De tão pálido, seu ventre quase desaparece com a luz tal como empregada pelo artista.
O espectador é, dessa forma, levado a enfrentar a face da mulher. Seus olhos verdes estão como o próprio rosto, petrificados. Em contraste, seu par de seios, de um rosáceo sutil, boiam cálidos entre os cabelos em desalinho.
Na mostra, Pablo Picasso também oferece uma representação do feminino em quatro trabalhos. Em "Busto de uma Mulher Baseado em Lucas Cranach, O Jovem", de 1958, o artista espanhol apresenta uma versão geométrica -mas não tão cubista-, de uma tela de Lucas Cranach, de 1564. Ao contrário de Munch, a mulher de Picasso se forma por uma composição em blocos cromáticos -amarelo, vermelho, marrom, azul e preto.
Tantas relíquias expostas em "O Rinoceronte: Cinco Séculos de Gravuras do Museu Albertina" só poderia vir mesmo de Viena, cidade onde tudo nos remete ao legado da monarquia dos Habsburgo. As origens da coleção Albertina remontam a 1776, quando o conde Giacomo Durazzo presenteou o duque Alberto de Saxe-Taschen, marido de Maria Cristina, filha da imperatriz Maria Teresa, com quase mil objetos de arte, que deveriam formar um acervo para fins educacionais.
Com o tempo, a coleção só cresceu, sobretudo com o empenho do herdeiro, o arquiduque Carlos. Em 1919, a propriedade do acervo passou dos Habsburgo para a recém-fundada República da Áustria. Viena, porém, continua igual.
A despeito do conservadorismo da herança monárquica, a cidade combina em sua arquitetura história e modernidade. O palácio em estilo neoclássico do Museu Albertina está a um quilômetro do bloco de concreto onde fica o Museu de Arte Moderna e Contemporânea, o Mumok, projetado por Karl Schwanzer no pós-Guerra.
Nesse choque entre nostalgia e futuro, nasceu, em 1890, Egon Schiele, o filho rebelde da modernidade. "Schiele tem muitas pinturas e ainda mais desenhos, mas gravuras são poucas, o que vemos aqui são raridades", diz Metzger. Na mostra, entendemos por que o expressionista tanto provocou a ira dos poderosos da época, sendo até preso, em 1912, acusado de divulgar materiais pornográficos.
Entre as cinco litogravuras do artista, vemos um retrato de Arthur Roessler, seu amigo. O homem aparece em perspectiva e suas mãos, espalmadas, revelam seu traço trêmulo, que percorre toda a sua obra. Em "De Cócoras", de 1914, ele grava com ponta-seca uma mulher nua. Nenhuma superfície parte daquele corpo, que está de costas para o espectador, se forma por linha reta. O artista recusava o superficial, tentando desvendar a psicologia das massas.
Incompreendido, Schiele viveu, durante 21 anos, no mesmo mundo do compositor austríaco Gustav Mahler. Se considerado o espírito do tempo, eram, podemos assim dizer, dois irmãos, duas almas atormentadas. Aos 15 anos, Schiele perdeu o pai, sifilítico, e nunca mais parou de pensar em morte e sexo. Mahler, perseguido pelo antissemitismo durante toda a vida, não ficou impune à morte, em 1907, de sua filha Maria Anna, aos cinco anos de idade.
No "Autorretrato Nu", de 1912, aquele homem magricela, doente, parece grunhir toda uma sinfonia. Se como Dürer, fizermos um exercício de imaginação, talvez ouçamos daquela gravura a quinta de Mahler, "a sinfonia amaldiçoada", composta em 1902.
O traço trêmulo corresponderia, então, àquela tonalidade, dó sustenido menor. Dessa linha em espiral, surgiria a expressão de Schiele, todo o adagietto do quarto movimento. O olhar de desalento seria a harpa, apresentando o mesmo tema -o mesmo traço- na insistência das cordas.
Mahler dizia que a sinfonia deveria abarcar o mundo. Schiele parecia estar contido nele. Sua vida também era de desassossego, tédio, melancolia.