Emílio Orciollo Netto vive a crise da meia-idade em solo de Antonio Prata no teatro
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em cena, um homem observa a imagem da família que criou. A mulher, o filho pequeno e a certeza de que o casamento sobreviveu à maior prova matrimonial da atualidade -a pandemia da Covid-19. Ainda assim, embora o relacionamento não tenha naufragado, a vida de pais de primeira viagem isolados matou o desejo. Surge então a chance de uma transa casual.
É essa a premissa que estrutura "Muito pelo Contrário", solo escrito pelo cronista e roteirista Antonio Prata, colunista deste jornal, para o ator Emílio Orciollo Netto, que chega ao palco do teatro Unimed nesta sexta-feira, após dois anos de espera.
"O texto estava pronto antes da pandemia, e nós pensamos muito sobre o que fazer com ele, se faríamos online, de forma híbrida, mas fomos percebendo um movimento dos amigos, que começaram a se separar ao longo do isolamento, e decidimos adicionar mais essa camada" diz Orciollo Neto, que abordou Prata depois de se encantar com a série "Pais de Primeira", escrita pelo roteirista para a Globo em 2018.
"Eu tenho um filho de cinco anos e queria falar sobre paternidade, casamento, cotidiano, tudo isso estava latente em mim, porque, quando se é pai de primeira viagem, sua vida muda", ele diz. "Você deixa de ser o protagonista."
Prata, por sua vez, viu no convite a chance de explorar outros olhares das relações familiares e mergulhar nos questionamentos sobre o sexo fora do casamento e tudo o que envolve a construção de sua geração.
"Surgiram muitos casamentos abertos, muitos 'trisais'", diz. "Nem todo mundo tem filho pequeno, mas todos os casais tiveram seu casamento abalado de alguma forma, e isso dá uma camada legal, porque se você tira o filho da equação e deixa só o casamento, a peça ainda fica de pé."
Em "Muito pelo Contrário", Ricardo se vê às voltas com a decisão de se encontrar ou não com uma colega de trabalho. A ideia é uma transa casual e depois cada um para seu lado. As coisas tomam outra proporção quando a personagem se dá conta de que sua mulher também tem o mesmo direito.
"Minha geração adotou um modelo careta. Somos filhos da geração que abriu casamento, fez comunidade hippie, suruba, tudo nos anos 1960. E nós compramos o projeto burguês de ir morar junto, casar, ter filhos. Mas a galera mais jovem já vem ao mundo assim, com relacionamento aberto, a bissexualidade mais resolvida, enquanto nós ainda estamos tentando manter o casamento e ser feliz nele", diz o autor.
Com o texto pronto, Orciollo Netto foi buscar um de seus antigos parceiros, o diretor Victor García Peralta, para assinar a encenação. O ator, contudo, sentiu falta de um olhar que quebrasse a hegemonia masculina, branca e cisgênero da produção. Assim, entrou em cena a diretora Vilma Mello, que assina a montagem ao lado de Peralta.
"Se não houvesse uma visão feminina de fora, talvez esse espetáculo não acontecesse."
Ricardo é descrito como um homem de sua geração, com os medos, as questões e uma criação que não nega o machismo estrutural, embora o busque combater. É um homem que se assemelha a um aparelho de fax, na comparação de Prata.
"Ele está perdido entre o vinil e o streaming. Ele não é um tiozão bolsonarista que vai no Bahamas e resolve a questão nem o moleque do poliamor. Estamos prensados nesses dois mundos."
O dramaturgo diz ainda que teve embates com o ator para que a personagem fosse o que tivesse de ser, desde o machista inseguro até a figura que se propõe uma autocrítica. "A peça não pretende corrigir o homem nem mostrar um caminho a ser seguido. Eu quero ver o cara que joga a velhinha da escada e entra em crise. Quero 'Crime e Castigo'", diz.
O ator contemporiza. "Não estamos aqui para julgar. O espetáculo não põe o homem branco, hétero e cis num lugar de coitadismo."
Dentro das pautas contemporâneas, que têm tratado de assuntos como a visibilidade trans, o antirracismo, a luta feminista e o orgulho LGBTQIA+, a equipe se questionou sobre as razões para montar uma obra que trata das questões de um homem branco, hétero, cis de classe média.
Prata surgiu com a resposta definitiva. "Para conhecer o inimigo", ele resume. "Na Segunda Guerra, a França não podia se dar ao luxo de dizer que não queria saber nada sobre os nazistas."
O escritor aproveita o lançamento do espetáculo para anunciar também "Por Quem as Panelas Batem", coletânea de crônicas publicadas neste jornal que expande as discussões para o campo sociopolítico, produzindo um arco narrativo que abarca os acontecimentos desde as manifestações de junho de 2013 até o ano de 2022 com a campanha de reeleição de Jair Bolsonaro, do PL, à Presidência da República.
"Eu estava pessimista há uns anos porque aquele discurso de Gilberto Freyre, que transforma a miscigenação numa promessa e deságua na antropofagia, na Semana de Arte de 22 e no tropicalismo, bateu num muro", afirma. "Com a eleição de Bolsonaro, se revelou que havia muita mentira nessa mistura harmônica."
"O discurso da democracia racial cabia apenas no Leblon, não na favela da Maré. Ainda há combustível para transformarmos o Brasil num país que não seja essa tragédia dominada por um grupo de imbecis."
MUITO PELO CONTRÁRIO
Quando 02 de setembro a 09 de outubro
Onde Teatro Unimed
Preço R$ 35,00 a R$ 90,00
Classificação 14 anos
Autor Antônio Prata
Elenco Emílio Orciollo Netto
Produção Morente Forte
Direção Vilma Mello e Victor García Peralta
Horário: 21h e 18h