Entenda como a briga de Godard e Truffaut ditou os rumos da nouvelle vague
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Companheiros de primeira hora, o rompimento de Jean-Luc Godard, morto aos 91 anos nesta terça-feira (13), e François Truffaut ditou os rumos da nouvelle vague. Em linhas gerais, Godard afirmava a necessidade de fazer um cinema político, enquanto Truffaut se notabilizaria pelo lirismo de seus filmes.
Após 20 anos de amizade, o rompimento entre os diretores se deu em 1973, um dia depois de Godard assistir ao filme "A Noite Americana", de Truffaut. Numa carta, o diretor de "Acossado", de 1960, denunciava a natureza apolítica da obra que acabara de ser lançada.
"Você diz que os filmes são como os grandes trens da noite, mas quem pega esse trem, de que classe social essas pessoas pertencem, quem o conduz? Se você não fala do Trans-Europa, pode ser o trem da periferia ou de Dachau-Munique", escreveu Godard.
"A Noite Americana" conta a história de uma filmagem, sua lenta produção e os vários obstáculos que um diretor enfrenta até o lançamento de um filme. A paixão de Truffaut pelo cinema se torna evidente, mas o caso de amor entre Julie, interpretada por Jacqueline Bisset, e Alphonse, vivido por Jean-Pierre Léaud, irritou Godard. Para ele, a produção de "Je Vous Présente Pamela", ali retratada, era uma farsa.
"Possivelmente, ninguém te chamará de mentiroso, mas eu o chamo", registrou Godard. "Essa é uma crítica contra a falta de crítica presente em filmes de Chabrol, Ferreri, Verneuil, Delannoy, Renoir etc, é disso que eu me queixo."
Na época, os dois diretores já eram conhecidos em todo o mundo. Primeiro, eles assinaram críticas para a revista "Cahiers du Cinéma", responsável por dar corpo ao pensamento da nouvelle vague. Depois, com o prestígio de suas obras, saíram às ruas, em 1968, para demonstrar apoio a Henri Langlois, fundador da Cinemateca, a quem o ministro da Cultura, André Malraux, tentou exonerar.
Furioso, Truffaut respondeu às acusações de Godard, numa longa carta, que pôs fim à parceria. "Seu comportamento é de um merda num pedestal", ele escreveu. "Eu não estou nem aí para o que você pensa de 'A Noite Americana', acho tudo lamentável de sua parte. Você mudou de vida, de pensamento e, mesmo assim, você continua a perder horas no cinema, perturbando os seus olhos. Por quê? Para achar o que alimentar seu desprezo por todos nós? Para reforçar suas novas certezas?".
Desde então, cada um seguiu o próprio caminho. Sob o aspecto político, Godard só se radicalizaria, aderindo até mesmo ao maoísmo. Sempre provocativo, ele passou a chamar Truffaut de "pequeno burguês."