'Curtas Jornadas Noite Adentro' é um filme suave e notável
FOLHAPRESS - Antes de se dedicar ao longa-metragem, Thiago B. Mendonça produziu uma série de curtas cujo centro era a vida cultural de uma população pobre ou marginalizada de São Paulo. Seu personagem podia ser um velho fotógrafo de cinema, como Pio Zamuner, ou um grupo de artistas de circo mambembe.
Por isso mesmo seu primeiro longa era um pouco surpreendente: "Jovens Infelizes", de 2017, tinha como leitmotiv a imagem de uma jovem sentada, calada, sem braços. Em uma palavra, imobilizada. Era uma espécie de resposta emocional, irada, ao bloqueio que se montou à hipótese de ascensão de classes baixas no Brasil, a partir do cerco ao governo Dilma Rousseff. E as respostas emocionais, sabe-se, têm limites muito claros.
Daí "Curtas Jornadas Noite Adentro" representar, primeiro, um retorno ao seu antigo interesse. Se fosse necessário resumir tudo a um estribilho, digamos que fosse "o samba não pode parar". Algo bem longe da ira e mais aparentado ao tipo de sublimação a que nos acostumou por vezes o cinema de Carlos Diegues.
Mas esse é um detalhe. Mendonça chegou aqui a um primor de realização e equilíbrio que o coloca entre os principais cineastas de sua geração -e é preciso insistir: trata-se de uma ótima geração. Começando pelo equilíbrio: Mendonça teve o bom senso de confiar seus material às mãos de Cristina Amaral, montadora capaz de criar algo homogêneo até do material mais heterogêneo.
Era preciso, pois "Curtas Jornadas" não é um trabalho simples. Para resumir seu argumento, digamos que trata da trajetória de um grupo de músicos que sacrifica seus interesses imediatos em busca de reconhecimento por seu trabalho. Bem, essa é a história de metade dos filmes musicais produzidos pela humanidade.
Cercando um pouco mais, trata-se de observar os participantes desse grupo -seis ou sete- em dois registros: na música e na vida privada. Mas, quanto a essa segunda parte, Mendonça renuncia a contar uma historinha sobre dores, trabalhos e amores dessas pessoas. Ao contrário: tudo que sabemos deles será através de flashes, de pequenas sequências em que sua humanidade se revela plenamente.
Pouco há de excepcional em cada um desses segmentos. Podemos ficar com Jeguedé, que passa para cuidar da mãe, cega, ao mesmo tempo em que tenta rever a filha, a quem sua antiga mulher nega-lhe acesso. A mãe lamenta -afinal ele é o pai da menina; ele, porém, admite: "Mas ela tem sua razão".
Não é preciso mais que isso para transmitir ao espectador os inúmeros sentimentos que percorrem a vida de Jeguedé: bom filho e mau marido, simpático, explosivo etc. Para que mais? Mendonça parte para outro em seguida. Mostrará Edgardo, o cabeludo, chamando clientes para um mercado e acordando em uma construção inacabada. Ou o guarda de uma faculdade que compra um terreno e chama os amigos para um mutirão que o torne apto a receber a casinha que pretende construir ali.
Não há histórias. Conhecemos cada um deles por esses pequenos segmentos. Assim como Nino -papel de Carlos Francisco-, mais velho, responsável, ex-presidiário na condicional, trabalhando como chofer de madame e aquele que leva a tropa para as noitadas em seu carrinho caindo aos pedaços.
Dito assim, pode-se imaginar um filme a mais para explorar as feiuras da periferia. É bem o oposto. As locações -e a maneira de filmá-las- nos mostram, ao contrário, um mundo cuja beleza é tão encantadora quanto a música que os sambistas produzem.
No mais, não há violência nem mortes. Há súbitas perdas de empregos mais que precários. Necessidades diversas. Eventuais humilhações. Não há romances, exceto se nascerem do encontro de um pandeiro com um tamborim. Ou seja, essa vida periférica é vivida da maneira mais trivial do mundo, mas seu leitmotiv, longe de ser a infelicidade ou a raiva, é mesmo aquele: o samba não pode parar.
Mesmo que a violência de uma abordagem policial -o filme foge de clichês, mas esse é, desculpe, inevitável- possa interromper esse curso normal de acertos e equívocos entre bares, quase favelas, semicortiços, não pode parar o samba: é uma forma ao mesmo tempo de produção de cultura -a música popular continua sendo nossa expressão cultural mais significativa- e, sim, de resistência.
Thiago B. Mendonça produziu um filme tão suave quanto notável, tão experimental quanto acessível a qualquer público. Um feito a não relativizar: tanto mais nesse momento difícil que vive o cinema no Brasil.
CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO
Quando Em cartaz
Onde Nos cinemas
Elenco Carlos Francisco, Monalisa Madalena e Renato Martins
Direção Thiago B. Mendonça
Avaliação Ótimo