Saiba quem é o professor que 'matou' Elena Ferrante e cria notícias falsas há 20 anos

Por HENRIQUE ARTUNI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O homem de barba e peruca mal entra na videoconferência e, apressado, começa falando. "Sim, sou eu, Tommaso Debenedetti, fui eu quem criei a conta falsa no Twitter anunciando a morte de Elena Ferrante", conta em inglês, com um forte sotaque italiano.

Foi o ele mesmo quem procurou este jornal após a repercussão de um tuíte seu no final de agosto, no qual fingiu ser uma editora para divulgar a suposta morte da escritora em Roma. A informação chegou a ser publicada pelo britânico The Independent e logo retirada do ar.

A conversa dura pouco, mesmo que tenha demorado dias para ser marcada. Minutos antes de entrar na chamada, ele ainda pediu que nenhuma foto da conversa fosse publicada. Mas, ainda que na internet exista apenas um par de retratos dele, de dez anos atrás, dá para reconhecer que o homem calvo das imagens é o mesmo de agora.

A enigmática Ferrante --pseudônimo que assina sucessos como "A Amiga Genial" e que Debenedetti diz saber a identidade--, porém, não foi a única vítima desse réu confesso.

Margaret Atwood e Haruki Murakami, vencedores do Nobel como Kazuo Ishiguro e Svetlana Aleksiévitch, cineastas como Pedro Almodóvar e Costa-Gravas, políticos como Bashar al-Assad, Fidel Castro e até Joseph Ratzinger, o papa Bento 16, tiveram suas falsas mortes anunciadas por esse professor de história italiano de 53 anos, casado e pai de dois filhos.

Se esse "homem normal" parecia ansioso em vídeo, por email, o meio pelo qual preferiu conversar mais à vontade, a timidez deu lugar a uma notável vaidade na longa lista de nomes que já "matou" sob os disfarces virtuais.

O método é simples. Ele cria uma conta imitando algum perfil confiável e anuncia que fulano morreu. Minutos depois, ele encarna Sérgio Mallandro e revela que era tudo uma pegadinha de Tommaso Debenedetti. E o portfólio é grande, já que a mentira faz parte do cotidiano dele há pelo menos duas décadas --Paulo Coelho foi só a vítima do início deste mês, duas semanas depois de Ferrante.

Mas nem sempre ele teve esse hábito. "Eu trabalhei como jornalista entre 1994 e 2010 para jornais locais italianos. Eu era um 'bom' jornalista cultural, com entrevistas reais com vários autores. Mas, numa tarde, em 2000, o editor do Il Mattino me pediu para entrevistar [o escritor] Gore Vidal. Eu participei de uma entrevista coletiva com e, no final, pedi que ele respondesse algumas questões", narra. Mas o romancista americano recusou por estar atarefado.

"Mas precisamos da entrevista para a edição de amanhã", teria insistido o chefe de Debenedetti. "Daí inventei a entrevista. Os jornais publicaram o texto falso como uma exclusiva. Ninguém protestou ou negou", conta. "E eu comecei o meu jogo."

Como um "serial killer" que lista suas obsessões, ele dispara outro rol de falsificados --J.K. Rowling, Ken Follett, José Saramago, Mikhail Gorbatchov, Lech Walesa e até o próprio Ratzinger, dias antes de virar papa. Foram nada menos que dez anos lucrando nessa toada, com textos a toque de caixa, até que uma das falsas conversas com o autor Philip Roth chegaram ao conhecimento do americano.

Debenedetti foi confrontado em 2010 quando Roth descobriu ter "dado" uma entrevista falando mal de Barack Obama, quem na verdade admirava.

"A carreira dele [Debenedetti] está acabada", relatou o americano à época à repórter Judith Thurman, da New Yorker. Pressinado por ela, Debenedetti, em pânico, insistiu que o texto era real. Pouco depois, ele abriria o jogo. Mas ao contrário do vaticínio do autor de "A Marca Humana", a partir de então o italiano iniciou sua jornada como "campeão da mentira", como ele gosta de se classificar.

Ele se esquiva de responder se as suas mentiras, no fundo, não têm algo de terapêutico, ou de alguma carga de ressentimento. "Nunca falei pessoalmente com nenhuma das minhas 'vítimas'." Tampouco foi processado, afirma.

O que o inspira é uma vontade de "dizer a verdade pela mentira", como definiu Mario Vargas Llosa, também outra vítima de Debenedetti, em um ensaio no qual cita o professor, pejorativamente, como "um herói dos nossos tempos".

"É um jogo literário", acredita, qual um personagem borgiano. "Na era digital, a mídia criou uma nova forma de romance. Criando 'fake news' eu mostro que é possível ler em portais de notícias importantes tanto histórias reais como falsas na primeira página".

A referência aqui é literal, já que em janeiro de 2013 o professor espalhou uma suposta foto do então presidente venezuelano Hugo Chávez intubado. A imagem era falsa, retirada de um vídeo qualquer do YouTube, mas foi parar na capa do jornal El País, que perdeu cerca de EUR 300 mil recolhendo a edição com o erro crasso.

É uma forma, supõe Debenedetti, de escancarar as fraquezas do jornalismo que se embanana enquanto tenta ser veloz na internet.

Se o jogo é mesmo literário, Elena Ferrante é um enigma especial para ele --ainda que diga ter certeza da identidade desse pseudônimo. Afinal, foi por meio de uma página de Facebook falsa em 2014 que ele mesmo se passou por Anita Raja, a tradutora e escritora casada com o autor Domenico Starnone, dizendo ser ela a autora de "A Filha Perdida". "Na mesma hora, recebi mensagens de amigos de Raja, dizendo que já sabiam que ela era a Elena", argumenta Debenedetti.

Em 2016, o repórter Claudio Gatti fez uma controversa investigação a partir da folha de pagamento da tradutora, e também cravou que ela seria a dona da identidade secreta --mas isso nunca foi oficializado.

Debenedetti, por fim, parece temer que a best-seller acabe se tornando uma imortal que nem suas "fake news" consigam derrotar. "É difícil explicar que um pseudônimo morreu, senão os editores terão se revelar seu nome real, idade, sua lápide. Ferrante pode morrer e sua morte não ser anunciada, e vão continuar publicando livros em seu nome." Talvez as mentiras de Debenedetti sejam café pequeno perto dessa competidora anônima.