Em 'One Fine Morning', Mia Hansen-Love mostra a beleza apesar da dor

Por INÁCIO ARAUJO

FOLHAPRESS - Depois de mergulhar na aventura turístico-cinéfila de "A Ilha de Bergman", a cineasta Mia Hansen-Love retorna ao que parece ser sua preocupação central -a mulher e os múltiplos problemas e tarefas que a vida lhe impõe, que estava presente em talvez seu melhor filme, "O Que Está Por Vir", de 2016, o amor, o envelhecimento, a morte.

Em "Un Beau Matin", filme francês que chega à Mostra com título inglês -"One Fine Morning" ou uma bela manhã-, Sandra, papel de Léa Seydoux, é a jovem viúva que ao mesmo tempo precisa se ocupar de sua filha, do pai, ex-professor de filosofia com problemas neurológicos graves, e quando sobra algum tempo ainda visita a avó.

Não é de estranhar que não tenha tido nenhum relacionamento amoroso desde a morte do marido, nem que se apaixone por Clément -Melvil Poupaud-, velho amigo do companheiro, hoje em crise conjugal profunda.

Os problemas logo se acumularão na vida de Sandra, não sem antes lhe permitirem chegar ao talvez mais inspirado momento do filme, o primeiro, estranho, sem jeito beijo entre ela e Clément.

Talvez devido à visita à ilha de Bergman, Hansen-Love, que nunca pôde ser acusada de excessivamente otimista, compõe aqui uma imagem não raro sinistra da existência humana. Não irrealista, infelizmente.

Vivemos cada vez mais, portanto tendemos cada vez mais à degenerescência. Em vista dos problemas do pai, Sandra passa boa parte do tempo de asilo em asilo. É tocante, um professor de filosofia que não consegue mais ler, lembrar ou articular. E cuja condição piora dia a dia.

Mas não é menos tocante a situação de Sandra, já que o rolo de Clément e as incertezas deles com o destino de seu casamento parecem condená-la ao ostracismo ou à indesejável condição de amante.

Estamos, em suma, diante de uma tendência típica do cinema francês -a descrição das questões cotidianas, em que o acaso e a nossa condição humana intervêm com força e de onde estão excluídos heróis e vilões.

Na versão mais delicada (e católica), mas também mais sólida de Eric Rohmer, o mundo pode se revelar luminoso apesar de tudo. No mundo tumultuado e cruel que descreve Hansen-Love, o homem parece ter um destino traçado: a morte e, antes, a decrepitude, a perda da autossuficiência, o precário da existência. Pois que pode haver de mais deprimente que um intelectual com o cérebro em decomposição? E, convém saber desde já, sua doença não é Alzheimer.

Resta o amor como uma espécie de saída, provisória, talvez desesperada, cheia de um prazer que se faz acompanhar de incertezas angustiantes. É onde o humano se socorre, apesar de tudo.

Nesse sentido, é interessante notar como o começo do filme promete variações que nem sempre se consolidam. A estranha profissão de Clément -é no laboratório dele que acontece o primeiro beijo-, o ofício de Sandra -tradutora- e as discípulas do professor Kienzler -papel de Pascal Greggory, aliás ótimo- são todos aspectos que prometem mais do que afinal entregam, limitando não raro o filme a um vaivém entre as visitas ao pai e os tensos encontros com Clément.

Essa limitação acontece provavelmente por conta do pessimismo que impregna ao que parece cada vez mais o cinema de Hansen-Love. É como se a diversidade do mundo atrapalhasse um pouco o correr do pensamento da autora e o filme precisasse enfatizar os aspectos dolorosos da existência para nos levar a crer que, no meio do tumulto sem sentido da vida, existe afinal lugar, aqui e ali, para manhãs perfeitas.

ONE FINE MORNING

Avaliação Bom

Quando Em cartaz na Mostra de SP: Espaço Itaú Augusta, sáb. (29), às 14h; Espaço Itaú Frei Caneca, seg. (31), 18h30

Classificação 14 anos

Elenco Léa Seydoux, Melvil Poupaud e Pascal Greggory

Produção França, 2022

Direção Mia Hansen-Love