Canto de Gal Costa partiu de João Gilberto para inventar um Brasil
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando Gal Costa, que morreu nesta quarta-feira, aos 77 anos, encontrou João Gilberto pela primeira vez, ela ainda não tinha pisado fora da Bahia. A cantora estava com um jornalista que conhecia seu ídolo. "Era tão louca por João que pedi para me levar", ela disse, no ano passado, a este repórter.
A cantora Gal Costa durante o show 'Fa-Tal', de 1971, com pintura dourada na testa Reprodução A cantora Gal Costa durante o show "Fatal", de 1971, com pintura dourada na testa **** João Gilberto reconheceu Gal como uma "menina que canta bem", da qual tinha ouvido falar, e pediu que ela buscasse o violão. "Corri em casa, peguei meu violão. Ele cantou e pediu para eu cantar, e assim foi. Quando parei de cantar --um repertório basicamente dele, que eu conhecia todo--, ele disse 'você é a maior cantora do Brasil'. Nossa, foi um choque. Fiquei louca. Meu maior ídolo."
Àquela altura, o Brasil ainda não sabia da revelação feita pelo bossanovista, mas era questão de tempo. Ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, Gal Costa partiu do canto cochichado do mestre, mas o levou às alturas com seus agudos, o radicalizou sob a ditadura militar e transformou sua voz na mais orgânica expressão do tropicalismo --e uma das mais definidoras da música brasileira.
O começo foi no álbum "Domingo", de 1967, que ela divide com Caetano Veloso. Ali, Gal já mostrava que não era uma cantora convencional, preferindo a estética moderna da bossa nova ao canto empostado, e que tinha a ternura necessária para passear com delicadeza entre os versos do parceiro em músicas como "Coração Vagabundo" e "Avarandado".
Mas foi ao longo dos três álbuns seguintes --os dois álbuns de nome "Gal Costa", lançados em 1969, e "Legal", de 1970-- que ela se soltou de vez. Já em "Sebastiana", a segunda faixa do primeiro disco, Gal revira a composição clássica de forró, soltando grunhidos e vocalizes que se desfazem numa psicodelia tropicalista que nos anos seguintes ficou mais evidente em sua obra.
Gal tinha voz e técnica para ser uma cantora clássica, mas sua personalidade e o contexto em que estava inserida a levaram para caminhos diferentes. Se Caetano e Gil tinham a poesia e o conceito, era em Gal que as ideias tropicalistas encontravam sua expressão mais fidedigna.
Isso porque Gal incorporava espontaneamente a premissa do movimento que inaugurou a MPB e estabeleceu uma ideia renovada de Brasil através da música. É a voz de Gal que dá sentido a um repertório que abraça tanto a Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos, em "Se Você Pensa" quanto o forró, em "Sebastiana", e o balanço de Jorge Ben Jor, em "Que Pena", além da poesia de Caetano e Gil --em "Não Identificado", "Baby" e "Divino Maravilhoso".
É interessante perceber como a timidez de Gal vai se desfazendo ao longo dos primeiros discos que ela assina sozinha. Quando entrou em estúdio no fim dos anos 1960, disse o produtor desses álbuns, Manoel Barenbein, ela ainda não tinha a confiança necessária para expandir seu canto.
"Divino Maravilhoso" foi um marco nesse processo, e em "Cinema Olympia", a primeira faixa de seu segundo álbum, Gal já surge gritando e levando sua voz ao limite. Também nesse disco, ela estabelece sua marca com "Meu Nome é Gal", composição de Erasmo Carlos para ela na qual cita nomes de amigos antes de repetir a frase que dá título à faixa com uma ousadia que parece englobar todo o sentimento daquela geração, que inventava a própria liberdade no auge dos anos de chumbo.
Na voz de Gal, tudo se transformava. No disco "Legal", ela reinventa "Eu Sou Terrível", de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, com um vigor feminino que faz a versão original parecer inofensiva. Ela era capaz de, nesse álbum, trazer um afeto raro em "London, London" e apresentar "Falsa Baiana" com uma delicadeza tão profunda que a sensação é de que ela não precisaria abrir a boca para interpretar os versos.
Mas é em "Gal a Todo Vapor", álbum duplo gravado ao vivo de 1971, que ela anarquiza a tropicália --e, por consequência, a música brasileira. Do romantismo sublime de "Sua Estupidez" à visceralidade quase animalesca de "Vapor Barato", o brado de Gal tinha energia para expurgar a caretice de um Brasil que a essa altura a havia apartado dos amigos Caetano e Gil, presos e depois exilados.
Ao longo dos anos, Gal conseguiu ser uma intérprete reconhecida pela técnica vocal sem nunca deixar a inventividade de lado. Cantou Dorival Caymmi e Tom Jobim nos anos 1980 e 1990 e experimentou com o Auto-Tune em "Recanto", de 2011. Mais recentemente, em 2018, cantou com Marília Mendonça a música "Cuidando de Longe", recheando de graves a composição da sertaneja.
Com a chegada da idade, foi ficando menos explosiva, trocando os agudos estridentes para concentrar as energias por um canto mais comportado, mas ainda sedutor. Nos palcos, não se mexia mais de um lado ao outro incessantemente, mas continuava magnética como sempre.
João Gilberto foi o ponto de partida, e a tropicália seu principal veículo, mas Gal Costa transcendeu tudo isso para entrar para história não só como uma das maiores cantoras do país, mas ela própria também um sinônimo de música brasileira. De certa forma, com seu canto, inventou um Brasil.