'Fernando escolheu ir embora agora porque o país ficou muito chato', diz Humberto Campana
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Foi durante uma sessão de fotos no início deste mês que Humberto Campana, 69, percebeu que alguma coisa não ia bem com o irmão, Fernando, 61. "Ele não reagia aos pedidos do fotógrafo, parecia que não estava ali", lembra o designer. Para tentar animá-lo, pegou-o pela mão e conduziu-o numa dança. "Foi lindo porque eu nunca tinha abraçado ele. A gente sempre teve muito carinho, mas contato físico zero", conta.
Os dois formaram a dupla Irmãos Campana, referência mundial em design de mobiliário feito sobretudo a partir de materiais inusitados, como poltronas estofadas com ursinhos de pelúcia ou bonecos de pano. Fernando morreu na última quarta-feira (16), de causas não reveladas. Neste depoimento à Folha de S.Paulo, Humberto fala sobre a vida, a obra, o legado e o desgosto do caçula com o Brasil atual:
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O nome Fernando foi escolhido por mim. A nossa relação não tinha filtros, era feita de muita poesia, muitas verdades. Às vezes a gente ia fazer uma palestra e quando saíamos do hotel, notávamos que estávamos com a mesma roupa. Todo mundo achava que era uma estratégia nossa, era combinado. E não. Era tudo espontâneo. Tínhamos uma intimidade muito grande.
Mas muitas vezes nós brigávamos de tapa. Saíamos aos socos no estúdio, as pessoas falavam: "Chama o Dorival!". O Dorival é o funcionário mais antigo, trabalha com a gente desde os anos 90. Ele que apartava nossas brigas. Cinco minutos depois a gente falava: "Quer dar o dedinho aqui?" E fazíamos as pazes, ficávamos amigos de novo, como crianças. Na nossa relação nada era camuflado, era tudo muito na lata. Às vezes doíam as coisas que meu irmão me falava, e eu sei que também causava isso a ele.
Era uma pessoa muito engraçada, divertidíssima, mas também tinha um gênio do cão. Eu admirava todo esse yin e yang dele. Tudo era luz, bonito, depois vinha um mau humor? Aprendi a lidar com isso. Acho que o Fernando era espírito jovem, como a Miúcha, que morreu com uns 80 anos mas era uma criança.
Nós tivemos uma amizade muito prolongada, eu, ela e o Fernando, algumas vezes com a Bebel, filha dela. A Miúcha queria casar comigo e falava: "Aí a Bebel casa com o Fernando!". A gente fez muita coisa juntos. Uma noite, estávamos os três no apartamento dela, e depois de umas quatro ou cinco garrafas de vinho, nós achamos feio o tapete que ela tinha em casa e eu falei: "Miúcha, me dá uma tesoura aqui". Ela nos deu duas tesouras e eu e Fernando destruímos tudo, fizemos uma colagem com o tapete. Foi engraçado, ele era divertidíssimo.
Os nossos pais gostavam de viajar. Meu pai tinha um Fusca e nos levava para Brasília, para o Rio Grande do Sul... Uma vez fomos para Porto Alegre num verão e "My Sweet Lord" estava tocando em todas as rádios. Era engraçado porque a gente ia ouvindo "My Sweet Lord" e discutindo, eu e ele, meu pai e minha mãe. Foi nossa primeira grande viagem juntos e eu não esqueço, foi muito bonita, as estradas no sul eram todas cheias de hortênsias.
Eu aprendi muito com o Fernando. Ele que me ensinou a ser inconformista. Estudei Direito na USP, ele se graduou arquiteto e fez estágios com Anish Kapour, Pierre Keller, com Keith Haring. Quando deixei a faculdade, falei: vou construir minha vida com as minhas mãos. Queria ser escultor e comecei fazendo artesanato. Fui para Itabuna, na Bahia, e aprendi a fazer molduras de espelhos de conchas.
Minha vida como artista, entre aspas, começa ali, no final dos anos 70. Fiquei um ano lá, depois vim para São Paulo, e o Fernando veio me ajudar no final do ano. Fazia notas fiscais, entregava os espelhos que eu criava. Então ele, com aquele olhar de arquiteto, passou a dar funcionalidade e bom gosto para o meu trabalho. Foi aí que começou o Estúdio Campana, os Irmãos Campana, em 1984. É uma história muito longa, muito mágica.
Eu jamais esperava que um dia nós alcançaríamos isso: MoMA, Pompidou, Design Museum, e por aí vai. E nada mudou entre a gente. Quando nos tornamos conhecidos, o Fernando se recusava a ir aos lugares da moda, aos Jardins? Não, ele preferiu conhecer a periferia. Nos finais de semana ia aos botecos e bares do centro de São Paulo, da Barra Funda, da Lapa, da Zona Leste. Ele aprendeu o código da periferia e me ensinou, por exemplo, a nunca andar de carro com as janelas fechadas. Ele falou: "Com o olhar você gera empatia, não assusta, você jamais será assaltado".
Nós trocávamos muitas músicas. Ele tinha um gosto musical bem apurado. Gostava desde Rita Lee, Mutantes, dos Tropicalistas, Lou Reed, Rolling Stones. Ele me mandava essas músicas, mas eu gosto mais de música mais calma, então eu mandava bossa nova, João Gilberto. Ele adorava música francesa e me apresentou Benjamin Biolay. Eu adorei a sonoridade desse artista. A última canção que mandei para o Fernando foi dele, chamava "La Traversée", A Travessia. Olha que coisa.
Ele de volta me mandou um globo terrestre que está até hoje ao lado da minha cama, e eu guardo como uma relíquia. Uma semana antes de ele nos deixar, meu sobrinho trouxe de Brotas um vaso com uma suculenta, que é outra relíquia para mim. Nossa relação é carregada de símbolos.
Acho que o Fernando escolheu ir embora nessa hora porque o país ficou muito chato. Muito. Deu um atraso, voltou ao passado. Para ele doía muito ver as florestas queimando, os rios cheios de mercúrio, os índios sendo mortos, o racismo, o fascismo chegando. Tudo isso machucou muito a ele e a mim, assim como machucam as 30 mil pessoas que moram nas ruas de São Paulo e ninguém faz nada.
O Fernando não se adequava mais a este tempo. Ele queria voar, foi embora. Escolheu a hora certa, sem saber. Ele já estava querendo esse voo para outras galáxias. Ele era de Marte, era de Vênus, sonhava com isso, o sonho dele era morar na lua. E eu fiquei com os pés no chão para segurar o estúdio.
Nós fomos nos despedindo sem sabermos que ele estava partindo. Um dia antes de ele se sentir mal, um cliente nosso francês pediu que fizéssemos uma sessão de fotos num estúdio em São Paulo. Veio um fotógrafo francês fazer esse trabalho. Naquele dia eu vi que o Fernando não estava bem. Senti uma certa irritação no olhar do fotógrafo porque o Fernando não estava presente ali. Ele parecia estar em outro lugar. Alguma coisa estava acontecendo com ele, isso me preocupou, e eu não queria atrasar a sessão.
Como eu vi que não reagia aos pedidos do fotógrafo, peguei a sua mão e comecei a dançar uma valsa com ele. Dançamos de mãos dadas também rock, samba. Eu queria puxar alguma coisa dele, trazê-lo de volta para aquele momento. E foi lindo porque eu nunca tinha abraçado o Fernando. A gente sempre teve muito carinho, mas contato físico zero. Tínhamos esse pudor. E nesse dia nós dançamos, nos abraçamos, beijamos o rosto um do outro, nos olhamos. Enquanto isso ia acontecendo eu fui ficando emocionado, e não sabia por que, e ele também não. Aquilo foi de uma beleza, de uma poesia?
Na noite seguinte teve um jantar na galeria Luciana Brito, onde faríamos a exposição Polifonia Campana, ainda em cartaz. Meu telefone tocou e era o chofer dele, dizendo que ele estava vindo desmaiado no carro, que havia tido convulsões. Me pediu para eu ir correndo ao hospital e arrumar um leito. Eu o recebi nessa condição, no hospital, e aquilo foi uma violência muito grande porque eu pedia para alguém trazer máscara de oxigênio e ninguém fazia nada, foi difícil ter vivido isso.
A exposição abriu no dia seguinte, as pessoas perguntavam pelo Fernando, e eu tentei disfarçar a minha tristeza. Ele não abriu mais os olhos. Durou duas semanas e foi muito duro, como toda doença é.
Uma amiga minha tinha me mandado o Salmo 90, que eu rezava todo os dias. É muito bonito, dá o poder de abençoar alguém, a sua casa, a sua família. No dia 16 de novembro, às 20:18 eu acendi uma vela e rezei esse salmo. Às 20:21 terminei de rezar e meu outro irmão, que veio de Fortaleza e estava no hospital, me avisou: "O Fernando acabou de falecer". Aquilo foi uma benção porque foi como uma mensagem dele: "Eu me sinto abençoado, agora estou indo. Fique tranquilo, meu irmão. A vida é isso".