Os ianomâmis sonham diferente do homem branco, diz Hanna Limulja na Flip
PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - A antropóloga Hanna Limulja trabalha com os ianomâmis há 15 anos e tem uma esperança: que as pessoas os conheçam mais através dos sonhos deles e saibam que estão ameaçados, passam por uma crise humanitária e enfrentam o garimpo ilegal, que tem aumentado nos últimos anos.
Hanna lançou este ano, pela Ubu Editora, o livro "O Desejo dos Outros - Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami", em que discute a vida, a cultura e a história deste povo através de seus sonhos.
Os ianomâmis sonham diferente do homem branco, afirmou Hanna, que participou de uma mesa de debates na Casa Folha, mediada pela repórter Fernanda Mena, na Feira Literária de Paraty (Flip), no início da tarde deste sábado (26).
"Tudo o que os ianomâmis sonham é real e traz conhecimento", disse Hanna, que já trabalhou em várias ONGs no Brasil e no exterior e atualmente se dedica a um projeto de atendimento à saúde dos indígenas.
Já os brancos, como diz o líder ianomami Davi Kopenawa em seu livro com Bruce Albert, "A Queda do Céu", não sabem sonhar --só sonham com eles mesmos e com suas mercadorias. "Por conseguirem sonhar com tudo que existe, os ianomâmis entendem que o mundo que está aqui é importante para todos que o habitam e é necessário proteger."
Davi Kopenawa enviou um vídeo para ser exibido durante a mesa. Ele ia participar do evento, mas recebeu diagnóstico para Covid e não pôde se deslocar até Paraty.
"Precisamos ensinar o homem da cidade a pensar a floresta, a sonhar a floresta", disse Kopenawa, que é presidente da Hutukara Associação Yanomami. "É muito importante a gente sonhar: Quando o mundo está bonito, você sonha bonito; quando o mundo está lacrimando, triste, querendo chover, o sonho vem avisar a gente que o perigo está se aproximando."
Segundo o xamã, a natureza criou os sonhos para alertar e para que as pessoas pensem sobre o mundo, a floresta, os rios e o lugar de cada um. Para os ianomâmis, catástrofes como a pandemia de Covid e as mudanças climáticas são uma vingança da natureza, porque não se está cuidando da terra, não se está sonhando com o planeta.
A antropóloga discutiu vários aspectos da cultura dos ianomâmis, como o tabu dos mortos, que são cremados junto com todos os seus pertences e não podem ser nomeados, e falou de sua adaptação ao modo de vida dos indígenas. Para sua tese de doutorado, ela passou quase um ano vivendo com os ianomâmis. Morava com cerca de 160 pessoas, e sua "casa" era sua rede. Dividia o gosto de cozinhar com um casal de idosos
"Ianomâmis sempre perguntam o que você vai fazer e para onde você vai. Quando eu ia no meu caminho, eles perguntavam: o que você vai fazer? Vai fazer xixi?", lembra, rindo. "Quando eu pegava o papel, já sabiam --não, ela pegou papel, está indo fazer outra coisa."
Hanna falou sobre o impacto duradouro e negativo de visões estereotipadas ou superficiais sobre os ianomâmis, como a ideia de que são um povo violento, popularizada com o livro "Yanomami: The Fierce People", escrito pelo antropólogo americano Napoleon Chagnon no fim dos anos 1960.
O livro impactou até propostas de demarcação de terras ianomâmis nos anos 1970. Foi usado como justificativa para um projeto durante a ditadura militar de demarcar em 19 ilhas o território ianomâmi, alegando que eram ferozes, quando queriam abrir áreas para o garimpo, segundo Hanna.
A antropóloga alertou para a situação dos indígenas. Segundo ela, há cerca de 30.000 garimpeiros na terra deles, poluindo os rios com mercúrio, desmatando. "A gente ganhou [com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva], mas temos um Congresso devastador, o garimpo continua. Este governo vai acabar, mas deixou muitas sequelas."
Ela também celebrou a fotógrafa Claudia Andujar, homenageada na Flip deste ano, que registrou a vida dos ianomâmis e lutou pela demarcação do território dos indígenas, e criticou o fotógrafo Sebastião Salgado, que afirmou ano passado que os povos indígenas são a pré-história da humanidade.
"Os indígenas não estão no passado. Eles não são história. São contemporâneos", afirmou. "Sebastião Salgado atinge um público que se importa com a questão indígena porque exotiza os indígenas. "
Este foi um assunto também discutido na manhã deste sábado, quando a Flip organizou a tradicional mesa Zé Kleber, voltada a ouvir a comunidade local de Paraty.
A conversa foi centrada nos saberes de povos originários, reunindo o líder indígena Carlos Papá e a educadora Cristine Takuá.
Papá cantou uma música durante sua fala, ouvida em pé por todos os presentes, e disse ver com bons olhos que a Flip esteja mais eclética e aberta a ouvir "todos os seres pensantes", estando em uma cidade "conservadora, mas muito sensível".
Takuá celebrou este momento em que o festival "planta sementes para o vasto território agroindustrial do pensamento". Em sua fala muito aplaudida, ela afirmou não entender a distinção que se faz ao ensinar sobre a natureza e a cultura. "Todos nós somos natureza e todos produzimos cultura."
Ambos fizeram uma defesa enfática da preservação do ambiente e dos territórios indígenas. "Quando entendemos a jogada política que é ver instituições como a escola ou a indústria farmacêutica como feitas para dominação, começamos a olhar para o nosso próprio terreiro."