Quem é Lea Ypi, que narra o fim da ditadura em seu país, mas nunca achou a liberdade

Por WALTER PORTO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Eu sempre pensara que não havia nada melhor que o comunismo", escreve a albanesa Lea Ypi, lembrando seus tempos de criança. Era o ano de 1990, para ser mais específico, quando o regime autocrático de seu país desmoronava rumo à abertura política.

Ypi tinha 11 anos na época. "Os mesmos seres humanos que vinham marchando para celebrar o socialismo e o avanço em direção ao comunismo saíram às ruas para exigir seu fim." E a confusão foi mais dramática porque ela sofreu uma reviravolta pessoal. "Meus pais declararam que nunca haviam apoiado o partido que eu sempre os vi eleger, que nunca haviam acreditado em sua autoridade."

"Mas havia uma diferença entre nós", anota ela no capítulo "O Fim da História", comparando sua consciência política com a de seus pais. "Eu acreditava. Não conhecia outra coisa. Agora não tinha mais nada."

"Livre", esta autobiografia da hoje professora de teoria política da London School of Economics, foi eleito um dos livros do ano pelos jornais The Guardian e Financial Times ?e ressoa mais fundo quando a autora traz o componente íntimo de como foi viver a transição de uma das mais emblemáticas ditaduras de esquerda da Europa em direção à democracia.

A Albânia, para quem não é especialista em geopolítica, se notabilizou como um dos países mais isolados do mundo na segunda metade do século 20. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a nação vizinha da Grécia vivia fechada num governo de inspiração stalinista comandado por Enver Hoxha ?"tio Enver", para a menina Lea?, refratário tanto ao Ocidente quanto a ex-aliados como União Soviética e China.

Durante uma entrevista por vídeo, Ypi responde na lata quando questionada se ela se sentiu traída por seus pais ?afinal, eles vinham de uma linhagem opositora ao regime e esconderam isso dela até o fim. "Eu os entendo. É como ocultar dos filhos que o Papai Noel não existe."

Diz que não se sentiu traumatizada pelo choque, mas obrigada a "aprender uma nova língua". Numa passagem que se desenrola como uma revelação de Agatha Christie, a garota descobre que todas as vezes em que a família falava num conhecido que "se formou na universidade", eles se referiam a alguém que tinha saído da prisão.

Havia um pragmatismo primário na decisão de omitir da menina as verdadeiras opiniões políticas da família ?se ela soltasse a língua, todos poderiam ser perseguidos pelo regime. Mas a interpretação de Ypi, que dá esta entrevista enquanto lida, ela mesma, com três filhos fazendo algazarra em casa, vai além.

"Meus pais também queriam proteger minha ambição. Eu era uma criança muito obstinada, que acreditava que, se trabalhasse duro, teria sucesso na sociedade que a Albânia estava construindo. E eles não queriam matar isso tão cedo."

Há outra coisa, talvez ainda mais importante. "Eles também viam a liberdade como algo que se descobre no processo de entender as mentiras que cercam você. É algo que não pode vir de uma palestra ou de um ensinamento. Ninguém pode tornar você livre."

E aí chegamos ao ponto central do livro de Ypi, que passa longe de ser uma narrativa chapada sobre os terrores do comunismo e as maravilhas da sociedade liberal. A professora está muito mais interessada em aprimorar o conceito de liberdade ?e como ele não tem a ver com uma ideologia política ou outra.

"Há uma dimensão moral da liberdade que não pode ser reduzida a um arranjo institucional ou capturado por nenhum sistema político particular", afirma.

Aqui outro exemplo pessoal é ilustrativo. Quando seu pai deixa de ser um burocrata do partido para comandar os trabalhadores de um porto, já no sistema capitalista, ele não perde um sentimento de frustração ?por exemplo, ao ser obrigado a demitir boa parte dos seus funcionários por uma constrição financeira da empresa.

"Meu pai supunha, como muitos de sua geração, que se perdia a liberdade quando outras pessoas nos diziam como pensar, o que fazer, para onde ir. Ele logo percebeu que a coerção nem sempre precisa assumir uma forma tão direta."

A pesquisadora questiona a relação do ideal da liberdade com a ideologia apresentada pelo Estado onde você mora. Ser livre, diz ela, é sinônimo de trair essa sociedade, interrogando seu sistema de forma ininterrupta.

Nisso, ela não faz uma diferenciação em preto e branco entre sociedades autoritárias e livres, afirmando que "é uma questão de graus e tons". Há sistemas que parecem liberais e caminham em direção ao autoritarismo. Há sociedades que aparentam ser autoritárias e na verdade conferem boa margem de manobra a seus cidadãos. "O importante é capturar essas nuances."

A professora, então, assente quando ouve uma pergunta sobre a existência de uma relação intrínseca entre liberdade e democracia.

"A democracia é o sistema político que pode realizar a liberdade", afirma, lembrando o preceito iluminista de Jean-Jacques Rousseau sobre um sistema em que o cidadão é autor das próprias leis a que se submete. "Mas às vezes cometemos o erro de pensar na democracia simplesmente como instituições liberais ou parlamentares."

Para haver essa ligação direta, o arranjo político precisa de fato representar a todos. Se lidamos com uma sociedade com graves assimetrias de riqueza, educação e poder, diz a professora, não há representatividade e "você não é realmente livre".

É uma constatação menos cética que pragmática, afinal, permanece viva na escritora a crença num futuro em que as pessoas sejam cada vez mais livres. Só que esse é um mundo que ela jamais encontrou, como fica claro numa frase transcrita das conclusões de seu livro. "Meu mundo está tão longe da liberdade quanto aquele de que meus pais tentaram escapar."

LIVRE

Preço: R$ 79,90 (304 págs.); R$ 59,90 (ebook)

Autor: Lea Ypi

Editora: Todavia

Tradução: Pedro Maia Soares