Clássico gospel acusado de racismo por Kleber Lucas acende rixa entre evangélicos

Por ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando o pastor e cantor gospel Kleber Lucas definiu como racista "Mais Alvo que a Neve", um clássico da música cristã que ele próprio cantou no passado, acabou importando para o segmento evangélico uma discussão que há uns bons anos transborda em outros círculos culturais.

Haveria letras de música que, se em outros tempos passavam batidas, hoje soam inadequadas, com uma carga preconceituosa inaceitável para o padrão vigente?

Pululam exemplos de canções outrora incensadas e depois banidas de muitas caixas de som. É o caso da marchinha "O Teu Cabelo Não Nega", em que Lamartine Babo promete à "mulata" que, como "a cor não pega", quer o seu amor. Racista. Recentemente, Beyoncé regravou "Heated" para remover um termo que irritou ativistas dos direitos de pessoas com deficiência. Derivava de "spaz" e remetia à espasticidade, distúrbio comum na paralisia cerebral. Capacitista.

Eis a questão -excesso de zelo, como afirmam detratores do politicamente correto, ou uma bem-vinda revisão de intolerâncias normalizadas no passado, para outros tantos. Um debate que já pega fogo no meio secular, como evangélicos chamam o que é externo à sua religião, e que passou a carbonizar também as relações entre irmãos de fé.

Kleber arrastou o bode para a sala religiosa quando, em entrevista a Caetano Veloso para o canal Mídia Ninja, apontou racismo na adaptação brasileira de "Blessed by the Fountain", hino composto em 1881 pelo metodista Eden Reeder Latta.

O título da versão nacional, um verso na letra original, vem de uma passagem do Livro de Isaías -"embora os seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve".

Kleber, que no mês passado regravou com Caetano sua música "Deus Cuida de Mim", interpretou a mensagem com lentes contemporâneas. "Porque o sangue de Jesus me torna branco, as ideias de embranquecimento estão lá no hino."

Disse entender que, por memória afetiva, muitos entoem essa "canção lindíssima". Ele mesmo, no passado. Mas hoje, mais ciente da "teologia preta" que ganha corpo no Brasil, enxerga por trás dela uma mensagem "nefasta". "Por que a igreja evangélica brasileira, de maioria negra, continua cantando 'Mais Alvo que a Neve'?"

A colocação do pastor batista desagradou a meio mundo evangélico. Colega no gospel, a cantora Eyshila postou um vídeo cantando à capela o hino da discórdia.

Pastor e deputado federal, Marco Feliciano se referiu a Kleber como "pregoeiro da loucura socialista comunista" e questionou se evangélicos deveriam "rasgar a Bíblia", já que a inspiração para a música vem de lá. "Poxa! Onde chegamos? Eu confesso que isso me embrulhou o estômago vindo de um levita, um pastor cujos louvores me fizeram adorar a Deus com intensidade."

Portais evangélicos repercutiram a fala de Kleber em tom pouco amigável. O Gospel Mais publicou que, "assim como ocorre com outros problemas sociais, [o racismo] também tem sido instrumentalizado para apregoar um tipo de narrativa que enxerga discriminação em quase tudo". O hino cristão, diz o texto, nada mais é do que uma "óbvia referência à purificação".

Segundo o pastor Pedrão, líder da Comunidade Batista do Rio de Janeiro, o amigo "comeu mosca, falou besteira". Afinal, "Deus não faz acepção de pessoas" nem sequer vê cor nelas, diz.

Kleber não é míope ao contexto ideológico em que o bafafá teológico emergiu. Sua questão, afirma ele, não tem como alvo o texto bíblico mas como ele é recebido num mundo que carrega a chaga da escravidão em larga escala de africanos.

"Essa polêmica se acentua exatamente no momento em que a grande maioria do segmento que votou no governo derrotado se levanta também num tipo de revanchismo, de hostilidade contra todos que se posicionaram contra Bolsonaro."

Foi o caso dele, um dos raros quadros evangélicos de expressão que apoiou publicamente Lula, do PT, contra Jair Bolsonaro, do PL. E também o do cantor gospel Leonardo Gonçalves, que saiu em sua defesa.

"Você pode chamar de militância, mas estamos falando de sensibilidade. E a fala original é do pastor Kleber. Um homem preto que cresceu na favela. Sua fala está marcada pela sua experiência. Você não consegue ter sensibilidade para ouvir e refletir?"

Gonçalves pegou a deixa e problematizou outra canção velha conhecida do gospel, para ficar num verbo que dá alergia em quem reclama de um mundo "chato demais" onde todo mundo se ofende a toda hora. Seu alvo, dessa vez, foi "O Nosso General É Cristo", do veterano pastor Adhemar de Campos.

A mensagem cristã pode se perder para quem sofreu nas mãos das "incontáveis ditaduras militares na América Latina", afirma. "Para alguém que foi torturado por um general, como você acha que soa cantar 'O Nosso General É Cristo'?"

A bispa Fernanda Hernandes, filha dos fundadores da Igreja Renascer em Cristo, foi uma das que rechaçou apologia do militarismo no corinho evangélico.

Combinada com o comentário de Kleber, a análise de Gonçalves fomentou uma corrente direcionada à "'tchurma' do mimimi", que viralizou nas redes evangélicas. A troça era pegar trechos do cancioneiro gospel e os associar a alguma queixa da militância progressista.

"Sabor de Mel", famosa na voz da cantora Damares, acionaria gatilhos em diabéticos. "Olhai, olhai, olhai, os lírios cresceram no campo" seria preconceito contra cegos. "Eu não procuro por coroas", verso sobre a busca por Deus ser superior àquela pelo poder, poderia ser mal interpretado por mulheres mais velhas. E o que dizer de "Caminhando Eu Vou para Canaã", um acinte a cadeirantes?

Quem perde a sensibilidade, mas não perde a piada corre o risco de classificar de "exagero" e "militância" a dor do outro, disse Leandro Gonçalves numa rede social. É preciso empatia. E também é fundamental entender que contextos mudam, e isso é saudável para todos os envolvidos.

Ele lembra músicas populares na Igreja Adventista do Sétimo Dia, frequentada por sua família. "Vou dar um exemplo ridículo para ilustrar", afirmou. Muitas dessas letras usavam os termos "gozo" e "gozar", que indicavam alegria, mas hoje são compreendidos de uma forma menos, digamos, inocente. "Você vai me dizer que o significado dessa palavra não mudou? Tanto mudou que foram substituindo essa palavra porque estava ridículo!"