'Gagarin Way' ilustra horror das crises econômicas com revolta de operário
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Da indústria pesada, só sobrou a carcaça nas principais cidades da Grã-Bretanha. Uma progressiva transformação da economia deixou, na virada do século, milhares de operários desempregados do dia para a noite. Era preciso se inserir na nova ordem global, abandonar as minas de carvão e a indústria naval, para se integrar à Europa, realocando a mão de obra em empresas de tecnologia ou serviços.
No Mar do Norte, nem a tradicional pesca se manteve próspera. Afora as startups, o Produto Interno Bruto, o PIB, da Escócia é composto pela exploração de petróleo e gás. Em vilarejos como Rosyth, onde nasceu o dramaturgo Gregory Burke, a paisagem é só melancolia, com poucos dias de sol iluminando as construções legadas pela Revolução Industrial.
Sua peça "Gagarin Way", encenada pelo Grupo Cemitério de Automóveis na sede da companhia -com temporada marcada para o Teatro Arthur Azevedo-, tematiza aquele momento de depressão econômica e desilusão social, que ainda está no cerne das discussões sobre a possível saída da Escócia do Reino Unido.
Escrito em 2001, o texto conta a história de Gary, vivido por Mário Bortolotto -que também dirige a montagem-, um pai de família deprimido, com ideias socialistas. Cansado do cotidiano fabril e de seu casamento fracassado, ele resolve mandar um recado ao sistema. Ao lado do amigo Eddie, interpretado por Carcarah, sequestra Frank, papel de Nelson Peres, um alto executivo de uma multinacional.
A dupla leva o refém para a sede de uma fábrica de computadores, onde trabalha Tom, personagem de Daniel Sato, um jovem egresso da faculdade de política, responsável pela segurança do local. É nesse ambiente de tensão que os dois sequestradores decidem o futuro do empresário.
Com muitos palavrões, linguagem crua e gritos inesperados, "Gagarin Way" arrematou prêmios importantes, como o do Festival Fringe de Edimburgo, além de ter sido montada em dez países.
Segundo Bortolotto, o diretor, algumas encenações tentaram enveredar pelo humor irônico do texto, algo que não foi cogitado pela companhia. "Eu não gosto de levar para a comédia, gosto de dirigir peças pesadas", diz ele. "Não quero fazer algo para as pessoas ficarem felizes no final."
É de fato um texto sujo, longe do ideal de pureza que mobiliza multidões nas redes sociais. Se forçarmos o ouvido, podemos ouvir músicas do tipo "Somebody Got Murdered" -ou alguém foi assassinado-, da banda The Clash, como trilha sonora de algumas passagens de ação.
Não sem razão, Bortolotto diz que Burke decerto foi um punk. De acordo com o diretor, "Gagarin Way" espelha algumas passagens biográficas do dramaturgo. Ao que parece, o sentido marginal dos personagens da obra esteve presente na juventude de Burke. Ele teve uma formação conservadora. Estudou em escolas católicas antes de ingressar na Universidade de Stirling.
Lá, um incidente marcaria seus anos como universitário. Na companhia de três colegas, ele espancou um estudante, tendo sido expulso da faculdade depois do ocorrido. Por isso, Burke recusou, em 2009, o recebimento de uma honraria da universidade. Naquela altura, o dramaturgo já era conhecido por outro sucesso, "Black Watch", de 2006.
A violência desencadeada em "Gagarin Way" é alicerçada pelo niilismo. Logo na primeira cena, Eddie, o mais niilista de todos, faz críticas ao existencialismo, apregoando a ausência de sentido na vida. Na visão dele, não só o sistema econômico havia falido -a política e a filosofia também.
"Burke arrasa com Sartre e esse ponto de partida logo me chamou a atenção para montar a peça", afirma Bortolotto. "A descrença na política institucional também é um perigo, como vimos no Brasil, e ocasiona a violência da trama."
Nesse sentido, um longo diálogo se desenrola, em que Eddie escarnece o destino de Tom. O jovem havia se qualificado na universidade, lera os maiores filósofos e romancistas, e acabou vestindo aquele colete laranja usado por tantos seguranças em cancelas. Em dado momento, Eddie vislumbra o suicídio como única saída para a vida.
O sequestro de um empresário, enfim, questiona até que ponto um ato político pode justificar crimes -algo que nos remete à discussão sobre a derrubada de estátuas. A todo momento, os personagens parecem tentar justificar o sequestro. "O que você faria se fosse eu?", pergunta Gary, com insistência.
Portanto, o crime se transfigura em liberdade de uma vida indigente. Em cena, papelões e andaimes nos remetem à arquitetura fabril da Grã-Bretanha, imensas edificações cinzentas que condicionam a vida dos trabalhadores, moradores de prédios de tijolinhos.
Segundo o site Economics Observatory, o desemprego dos anos 2000 acendeu a chama nacionalista da Escócia. Em novembro, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu por unanimidade que o país não poderia fazer um novo referendo sobre a independência.
"Ninguém quer montar esse tipo de peça, porque sabe que não vai dar dinheiro", diz Bortolotto. "Mas, no dia que isso for o meu norte, vou perder todo o tesão de fazer teatro."
GAGARIAN WAY
Quando 5/01 a 15/01, às 21h; 19/01 a 22/01, às 20h
Onde Cemitério de Automóveis - r. Francisca Miquelina, 155; Theatro Arthur Azevedo - Av. Paes de Barros, 955
Preço R$ 40
Classificação 16 anos
Autor Gregory BurkeElenco Carcarah, Daniel Sato, Mário Bortolotto e Nelson Peres
Direção Mário Bortolotto
Link: https://www.sympla.com.br/produtor/cemiteriodeautomoveis