'Roupa Suja' faz rir ao triturar a reputação de figuras históricas
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A leitura da nova edição de "Roupa Suja", publicado em 1923 por Moacyr Piza, provoca ao mesmo tempo uma sensação de alento intelectual e de amargor.
Alento: não é preciso ser um pesquisador da área para considerar bem-vindo o retorno à circulação de uma obra que -apesar do importante registro crítico que faz da política brasileira de princípios do século 20- estava esquecida.
Amargor: no livro, Piza se insurge contra vezos do poder que permanecem inabaláveis no país. Ou, no mínimo, ainda o assombram.
Mais: a tragédia que marcou a morte do autor -sobre a qual será inevitável falar aqui- tem elementos que, apesar de devastadores para toda a sociedade, seguem presentes no cotidiano nacional. "A história é uma galeria de quadros onde há poucos originais e muitas cópias", como escreveu o pensador francês Alexis de Tocqueville.
Foi por uma série de razões, "algumas políticas, outras pessoais", conforme atesta no posfácio o historiador Boris Fausto, que Piza decidiu publicar "Roupa Suja", começando "por um fato que, à primeira vista, nos parece miúdo, a ponto de ter sido sepultado".
O fato: em 1922, diante do risco de derrota nas eleições de Capivari, em São Paulo, o governo estadual -então sob o comando de Washington Luís, do Partido Republicano Paulista- enviou àquele município um grupo de policiais que atuariam para reverter a situação.
Prejudicado, o Partido Democrático da cidade entrou na Justiça. O sorocabano Piza, opositor do PRP, tinha parentes em Capivari, além de amigos nascidos lá, e decidiu entrar na briga.
Sua verve implacável não era desconhecida quando "Roupa Suja" veio à tona. De origem aristocrata, culto, indomável, Piza, formado em direito pela Faculdade do Largo São Francisco, colaborava com diversos veículos.
Ao longo da carreira como escritor, ecoou "preconceitos contra homossexuais (...), negros e japoneses, algo bastante comum às pessoas brancas", anota Fausto, ressaltando, todavia, que "para além dos exageros", Piza criticava os males da política com "inegável destemor".
"Roupa Suja" foi o ponto culminante dessa vocação. Nele, o autor se revela hábil na arte da sátira, provocando não a gargalhada e sim o riso contido, íntimo, cerebral, que costuma acompanhar o uso inspirado da ironia.
A obra tritura a reputação dos vultos que aborda. O principal deles é justamente Washington Luís, embora sobrem referências debochadas a Júlio Prestes, líder do governo no Congresso de São Paulo, ridicularizado pela fala caipira e chamado de "donzela" -motivo pelo qual, insinua Piza, teria conquistado a simpatia do chefe do executivo paulista.
"Roupa Suja" ataca a gestão de Washington Luís pelo que o escritor considerava desperdício de dinheiro público: a construção de muitas rodovias. "A honestidade de um governo está (...) em gastar só e só aquilo que possa, sem sobrecarga inútil do povo, e (...) com preferência dos serviços mais urgentes", pontua.
Piza, porém, não fica nesse terreno -recorde que existiriam também "razões pessoais" por trás do seu "panegírico" às avessas.
O livro sugere que o futuro presidente da República recebera, em festas oficiais, "uma senhora elegante, bela, quase divina, e mais que tudo, alegre" -uma prostituta de luxo-, levada pelo deputado Roberto Moreira (que, indignado, por pouco não se bateu em duelo com o autor).
A personagem seria Nenê Romano, com quem Piza iniciara, cerca de dois anos antes, um caso tempestuoso. Já incomodada com o ciúme explosivo do autor, a "senhora alegre" resolveu encerrar a relação após o lançamento do "panfleto", supostamente atribuindo a ele o sumiço de quem a sustentava, pois ganhara o epíteto de "mulher do 'Roupa Suja'".
Inconformado, Piza acabaria matando Nenê a tiros, dentro de um táxi, em 25 de outubro de 1923, suicidando-se na sequência. Tinha 32 anos; ela fazia 26 naquela data.
O voto livre desrespeitado, a falta de sensibilidade do governo para as reais necessidades da população, o assassinato de uma jovem pelo ex-amante -tudo isso soa, sim, de forma amargamente familiar. Eis uma história que não se pode mais admitir ver reeditada.
ROUPA SUJA (POLÊMICA ALEGRE)
Preço R$ 59 (200 págs.)
Autor Moacyr Piza
Editora Chão
Avaliação Bom