Peça inédita de Bernard Shaw alfineta soberba da classe médica elogiando a arte

Por GUSTAVO ZEITEL

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Então, é isto a morte?", perguntou, em vão, Jennifer Dubeat, personagem da atriz Bruna Guerin em "O Dilema do Médico", peça de Bernard Shaw, em cartaz pela primeira vez no Brasil, no Auditório do Masp. O dramaturgo irlandês enfrentava a finitude da vida, encenando a morte de um homem, o pintor Louis Dubeat, interpretado por Iuri Saraiva.

A peça, que estreou em Londres em 1906, nascera de uma provocação do dramaturgo escocês William Archer, com quem Shaw manteve extensa correspondência. O autor de "O Dilema do Médico" se notabilizou por tratar de temas intangíveis em seu prosaísmo realista, mas, na visão de Archer, Shaw só se tornaria um grande autor se encarasse a materialidade da morte, adotando os mesmos procedimentos cênicos do teatro popular.

Jennifer não encontraria respostas para a questão existencial. Até porque não se chega a conclusão alguma, postos tantos dilemas em pouco mais de duas horas de peça. No palco, fica somente o vazio, próprio da inexistência, refletido nos focos de luz envoltos por uma fumaça, que emula o fog britânico.

Dirigido por Clara Carvalho, "O Dilema do Médico" conta a história do respeitado doutor Colenso Ridgeon, papel de Sergio Mastropasqua, que descobre uma vacina capaz de curar a tuberculose. A substância, porém, deve ser administrada com parcimônia. A falta ou o excesso dela pode levar o paciente à morte. E só alguns seriam salvos, dado que o medicamento estaria disponível em pequenas levas.

Depois de muito insistir, Jennifer consegue se consultar com Ridgeon. Ela pede que seu marido, o artista Louis Dubeat, seja um dos escolhidos para receber a vacina. Mas o pobre médico Blenkinsop, vivido por Luti Angelelli, entra na disputa pela mesma dose.

Apaixonado por Jennifer, Ridgeon deixa o artista morrer, sendo acusado, no fim da peça, de negligência. Jennifer, por seu turno, publica um livro sobre a história do ex-marido e organiza uma mostra com suas pinturas. Desmoralizado, o médico não consegue seduzir a jovem, que se casa com outro homem.

"Com a pandemia, nunca se falou tanto de vacina, de remédios, alguns sem nenhuma comprovação científica e que eram usados pela população", diz Carvalho. "A ciência passou a fazer parte do cotidiano das pessoas, então decidimos montar essa peça agora."

Para solucionar a tuberculose, doença que à época era tão temida quanto o câncer é atualmente, um batalhão de médicos apresenta fórmulas mágicas logo no início do texto. Um dizia que a enfermidade seria coibida retirando a "matéria orgânica deteriorada" dos pacientes. Outro apostava numa estratégia de eliminação dos germes para evitar o agravamento da doença.

É, afinal, uma postura bem similar à adotada por muitos médicos durante a pandemia. Alguns, receitaram cloroquina, acreditando numa pílula mágica -e inexistente- contra o vírus. Outros, furaram a fila da vacinação, em notório conflito com a ética médica.

Nesse sentido, o texto satiriza a onipotência dos médicos, que se acham demiurgos, com o poder de dar e tirar a vida. Shaw, ele próprio, tinha vários amigos médicos e acompanhava de perto o desenvolvimento da ciência. Não por acaso, o personagem de Ridgeon fora inspirado num médico de sobrenome Almright, que Shaw, provocativo, o chamava de "Almwrong" -um trocadilho entre as palavras "certo" e "errado", em inglês.

Em pequenas subversões da linguagem, Shaw mostra o seu gênio e desfila um repertório humorístico. Um homem invade o consultório de Ridgeon, que se assusta e pergunta se alguém por acaso estava morrendo. Jennifer, à sua frente, diz que sim, o seu marido. Na beira da morte, Louis Dubeat afirma não gostar de viúvas e chega a implorar para a sua mulher achar outro homem.

O texto, traduzido pelo próprio elenco da Companhia Círculo de Atores, mantém a ironia dos jogos de diálogo, que alicerçam o sentido do tragicômico da obra. Em 1898, Shaw dividiu seus textos em dois grupos, publicando o livro "Plays Pleasant And Unpleasant" -"Peças Agradáveis e Desagradáveis", em inglês.

"Essa obra não está nessa classificação, é um texto ambíguo, que contrapõe a arte à medicina, mas a arte sempre vence, porque é imortal, essa é a diferença do artista para o médico."

Nascido em 1856, em Dublin, na Irlanda, Shaw teve formação irregular, assistindo a aulas particulares dadas por um tio. Autodidata, adquiriu vasto conhecimento em diversas áreas do saber, das ciências à literatura. Em 1876, se mudou para Londres para ser escritor. Na capital inglesa, se engajou politicamente. Fundou a Fabian Society, uma sociedade de socialistas fabianos, e lutou em prol do vegetarianismo.

Seus primeiros romances foram um fracasso, mas logo ele se notabilizaria como um dos principais autores de teatro da história. Em 1893, escreveu "A Profissão da Sra. Warren" e, em 1913, "Pigmaleão", que ganharia as telas e uma adaptação musical, sob o título de "My Fair Lady".

Se em "O Dilema do Médico" Shaw questiona a ética dos profissionais da saúde, o moralismo da sociedade da época não é menos atacado. Louis Dubeat, o pintor, é um bígamo, como descobrimos em poucos minutos de peça. Sua postura, porém, não se deixa afetar pelos comentários dos médicos, que se assustam com alguém tão imoral.

"O artista é um anárquico, como de certa forma Shaw foi em vida. "Ele não está nem aí se vai pagar os empréstimos ou não, é totalmente niilista e isso incomoda as pessoas."

O DILEMA DO MÉDICO

Quando 20/01 a 26/03

Onde Auditório do Masp - Av. Paulista 1578

Preço R$ 60

Classificação 14 anos

Autor Bernard Shaw

Elenco Sergio Mastropasqua (Colenso Ridgeon), Iuri Saraiva (Louis Dubedat), Bruna Guerin (Jeniffer Dubedat)

Direção Clara Carvalho