Fermentação deixa posto na alta gastronomia e ganha até rede social própria

Por FLÁVIA G. PINHO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "É um vício. Você começa fazendo kombucha, passa para o levain e, de repente, está cercado de potes." É assim que o programador Leonardo Alves de Andrade descreve o fascínio que a fermentação exerce sobre profissionais de cozinha e amadores.

Leonardo é sócio de Fernando Goldenstein Carvalhaes na Companhia dos Fermentados, uma fabriqueta de kombucha que, em sete anos, virou o Grupo Fermentare, com loja, distribuidora, escola e editora.

Escrito por Carvalhaes, o livro "Açúcar, Álcool e Vinagre: Celebrando a Arte da Fermentação", lançado em setembro do ano passado, é o segundo do autor e o primeiro da editora. Cerca de 10 mil pessoas já passaram por 18 cursos, que ensinam a fermentar vegetais e produzir missô e vermute, entre outros temas.

A dupla também está prestes a lançar uma rede social dedicada ao assunto. Usuários do app Fermenta.Me, previsto para entrar em funcionamento no primeiro semestre do ano, terão perfis gratuitos para compartilhar receitas, trocar culturas de leveduras e até receber alertas na hora de mexer em algum pote.

"Sempre que termina um curso, os alunos se organizam em grupos de WhatsApp para tirar dúvidas. Veio daí a ideia. Não será mais um fórum de perguntas e respostas, teremos uma timeline bem dinâmica", afirma Leonardo.

O tema nunca esteve tão em alta por aqui. Nos dias 29 e 30 de abril, São Paulo sedia a primeira Bora Fermentar Fest, evento com feira e cursos que terá a presença do americano Sandor Katz, popular autor de "A Arte da Fermentação".

O livro de Katz, lançado aqui pela editora Tapioca em 2014 e já esgotado, é a porta de entrada para boa parte dos fermentadores amadores. Foi assim com a cineasta Marina Person, que se lançou nesse universo em busca de alimentos saudáveis e já passou por vários cursos da Fermentare.

"Já sei fazer coalhada, iogurte, picles, kombucha e levain [fermento natural] de farinha de arroz sem glúten. Faço experimentações e ensino a vários amigos. É literalmente um bichinho que te morde e melhora sua saúde", diz.

Equipamentos com nomes estranhos, como "air locker" (válvula para liberar o gás carbônico) e refratômetro (que calcula a concentração alcoólica), fazem parte da rotina dos fermentadores. Mas não é preciso ter instrumentos de laboratório para começar.

Estudante de nutrição, Juliana Pião conta que fez os primeiros kombuchas numa quitinete. Hoje, instalada em um imóvel maior, já consegue produzir o próprio shoyu. "Agora os amigos se reúnem para fermentar comigo. Se aparece um feriado prolongado, a gente já calcula o que vai dar tempo de fermentar."

Autora do blog de receitas Cebola na Manteiga e do ebook "Para Começar a Curtir: Fermentação de Vegetais", a mineira Carolina Dini ensina em sua escola, em Belo Horizonte, processos simples como picles e chucrute. Receitas demoradas e mais complexas, ela registra em posts no Instagram, onde acumula 54,1 mil seguidores.

"As pessoas acompanham como a uma novela, me veem errando e acertando. Vira entretenimento", afirma.

Na cozinha profissional, a fermentação virou assunto obrigatório desde 2018, quando René Redzepi, chef do restaurante Noma, em Copenhague, lançou o livro "The Noma Guide to Fermentation".

A publicação inspirou gente como Raphael Vieira, chef do 31 Restaurante, na República, centro de São Paulo. "Comecei a fermentar para aproveitar melhor os ingredientes. Como não temos forno, o tempo é um cozinheiro da equipe."

Ele criou pratos como o nukadoko, picles feito com farelo de arroz, acompanhado de gema curada em garum de tomate, molho fermentado que, na Roma antiga, era produzido com entranhas de peixe.

Novos negócios especializados têm pipocado por aí. São Paulo já tem duas fermentarias -a Trilha, na Barra Funda, e a Jandira, no Butantã- onde a técnica aparece em todas as seções dos cardápios.

Do menu da Trilha Fermentaria, o Pra Chuchar (R$ 49) inclui picles da casa, que varia conforme o dia, coalhada à base de iogurte de ovelha, relish de pepino com iogurte e pão feito da massa da pizza.

Em Sorocaba, Felipe Zalewska, fundador da 1Mami, produz garuns à base de carnes ou vegetais, além de outros condimentos fermentados que já chegam a restaurantes paulistanos como o Aizomê.

No Cepa, no Tatuapé, zona leste de São Paulo, o chef Lucas Dante finaliza torradas de mexilhão e peperonata com garum de carne da 1Mami. Juntos, ele e Zalewska estão fabricando um mirin, espécie de licor de arroz que também se vale da fermentação, que só estará pronto no meio do ano.

Nenhum desses profissionais e amadores sabe explicar por que esse processo milenar, uma transformação bioquímica nada fotogênica, deslumbra tanta gente.

"Muitas vezes, é fedida também", acrescenta Carvalhaes. "Quem faz chucrute pela primeira vez sente cheiro de pum. Mas quem disse que comida tem que ser sempre instagramável?"

FERMENTAÇÃO À BRASILEIRA

Preço R$ 129

Autor Fernando Gondenstein Carvalhaes e Leonardo Alves de Andrade

Editora Inst. Brasil a Gosto/Melhoramentos - 320 pág.

Link https://www.ciadosfermentados.com.br/