Osesp sabe tratar os estilhaços do passado de Mahler em boa estreia

Por SIDNEY MOLINA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando estreou em 1902, com regência do próprio compositor, na pequena cidade de Krefeld, na Alemanha, próxima à margem esquerda do rio Reno, a "Sinfonia nº 3" de Gustav Mahler foi rejeitada pelo público e pela crítica.

De fato, somente após as duas grandes guerras do século 20 -as quais o autor, morto em 1911, não chegou a vivenciar- sua poesia feita de estilhaços do passado passou a fazer sentido e chamar atenção.

Com ela a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, abriu sua temporada 2023 na Sala São Paulo. Nesta quinta-feira (2), a apresentação de quase duas horas, sem intervalo, foi antecedida por duas falas (curtas) de autoridades.

Ré-fá-lá-dó sustenido -as notas que os músicos costumam agregar sob a tipologia "acorde menor com sétima maior" surgem no trompete como uma aparição assustadora, sempre a relembrar, obsessivamente, que algo assombroso pode estar prestes a emergir.

Na maneira com que Mahler escreve a passagem, a tensão demora a se dissipar, e quando enfim a resolução ocorre, em geral outros acontecimentos já demandam a nossa escuta.

Regida pelo maestro suíço Thierry Fischer, o titular da orquestra, a frase do trompete se amolda ao todo, sem rompê-lo, soando menos terrível. A exigência aos metais é, de fato, imensa. Trombones e trompas, situados respectivamente à direita e esquerda de quem olha da plateia, têm solos com funções bem diversas.

Se trombone (liderado por Wagner Polistchuk) parece retirar seu solo mais célebre das profundezas da terra, trompa (em performance memorável de Luiz Garcia) introduz uma delicadeza bucólica, talvez antecipando a inspiração nas belezas dos reinos vegetal e animal que inspiraram a Mahler os dois movimentos seguintes.

Em comparação com Marin Alsop, a regente titular anterior da Osesp, Fischer escolhe andamentos um tantinho mais lentos, o que é mais notável nos movimentos com caráter dançante --minueto e scherzo.

Neste último, o solo fora do palco feito por Marcos Motta, escrito para evocar o som do posthorn (instrumento usado nos séculos 18 e 19 para anunciar a chegada e a partida dos carteiros) foi o momento mais encantador.

A viagem sonora de Mahler passa a incluir, então, a voz humana. Na verdade, apenas vozes femininas e de crianças, não no sentido mais operístico das árias e recitativos, como Beethoven usou na sua "Nona Sinfonia", mas como singelas canções.

Primeiro, com solo de contralto (a cargo da ótima cantora sueca Anna Larsson), em um pedido para que a humanidade desperte -o texto é extraído do "Zaratustra", de Nietzsche; e, no angelical trecho seguinte, o mais curto da sinfonia, com cerca de cinco minutos, Mahler utiliza o maior número de forças, o que mobilizou as presenças do Coro Infantil da Osesp e das vozes femininas do Coro da Osesp, Coro Acadêmico da Osesp e do Coral Paulistano, do Theatro Municipal.

Novamente, porém, ao contrário de Beethoven, Mahler não tem na voz, aqui, o desfecho de sua travessia. Sua arriscada opção foi por um movimento profundamente lento e tranquilo, totalmente instrumental, e nesse ponto o trabalho sonoro assinado por Thierry Fischer revelou-se pleno.

Quem está habituado com o posicionamento da orquestra na Sala São Paulo deve ter notado a mudança geográfica que, em um "novo" corredor diagonal do lado esquerdo do maestro, posicionou os violoncelos e, atrás deles, os contrabaixos. Algumas orquestras europeias mais antigas atuam assim -como a Gewandhaus de Leipzig.

Sustentar um longo discurso lento depois de tanto tempo de música não é tarefa fácil. As camadas de cores e intensidades extraídas por Fischer, a concentração dos músicos, a serenidade com que as frases eram desenhadas sem pressa no espaço, tudo manteve o público desperto e atento.

Uma obra com essa complexidade de detalhes necessariamente crescerá a cada apresentação. A estreia foi muito boa, e esse é o caminho que se espera para a Osesp ao longo da temporada.

OSESP - ABERTURA DA TEMPORADA 2023

Quando sex. (3) às 20h30; sáb. (4) às 16h30

Onde Sala São Paulo - praça Júlio Prestes, 16, São Paulo

Preço De R$50 a R$258