Como relatório da Ancine dá fôlego à tentativa de regular setor de streaming no Brasil

Por LEONARDO SANCHEZ

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Demanda antiga do audiovisual brasileiro, a regulamentação do setor de vídeo sob demanda, o VoD, ensaia enfim uma saída do papel. É o que indica a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, ao divulgar o primeiro grande relatório sobre o mercado no Brasil, apresentando dados que ajudam a entender o momento atual de transformação na indústria audiovisual e nos hábitos de consumo.

Criar uma legislação para regular o vídeo sob demanda, ou o streaming, é tarefa do Legislativo, vale frisar, mas órgãos públicos, representantes do mercado e a sociedade civil também devem se cruzar no caminho à frente.

"A Ancine tem um corpo técnico experiente, que vem lidando há bastante tempo com as políticas públicas para o setor e cujo conhecimento pode ajudar a tornar o caminho mais fácil. O estudo divulgado surge com essa proposta, principalmente porque já temos percebido a dificuldade de discutir qualquer ação regulatória ou de fomento sem dados confiáveis sobre o segmento", diz Tiago Mafra, diretor da agência.

Publicado no mês passado, o Panorama do Mercado de Vídeo por Demanda no Brasil esclarece diversos detalhes de um setor um tanto nebuloso, devido à resistência das plataformas em divulgar dados como os de audiência. Ajuda, ainda, a entender os motivos de a regulamentação ser assunto urgente.

Talvez o dado que mais chame a atenção, afinal, seja o que quantifica a participação de conteúdo brasileiro nos serviços de streaming que operam no Brasil. Em média, as plataformas têm apenas 10,9% de produções nacionais em seus acervos. Quem se saiu pior foram Vix, que não pontuou, Claro Video, com 0,7%, e Starzplay, com 1,2%, hoje rebatizada de Lionsgate+.

No outro extremo da lista, o Box Brazil Play apresenta 91% de filmes e séries locais, seguido pela assinatura digital de canais Globo, com 57%, e pelo Globoplay, com 30%. Entre as principais plataformas em operação no país, há ainda Amazon Prime Video, com 5,7% de produções nacionais no catálogo, e Netflix, com 5%, além de HBO Max, Star+, Disney+ e Paramount+, abaixo dos 3%.

Para chegar a esses dados, foram considerados apenas os conteúdos que têm registro no IMDb, base de dados online voltada a cinema e televisão que reúne, entre outras informações, o país de origem de cada produção. Com isso, 37% das 32 mil obras analisadas pelo estudo precisaram ficar de fora. Os dados foram coletados em julho do ano passado.

Há esforços por parte dessas empresas para reverter o quadro, embora o cenário ainda seja desfavorável. A Netflix, por exemplo, tem promovido eventos dedicados a produções nacionais e lança, nesta semana, a segunda temporada de "Cidade Invisível", trama que retrata o folclore brasileiro e que se tornou um caso raro de sucesso no exterior.

Protagonizada por Marco Pigossi, nome cobiçado pelas plataformas que já atuou para elas em português, inglês e espanhol, a série se junta a outros exemplos de sucesso, como "Bom Dia, Verônica", da mesma Netflix, "Dom" e "Manhãs de Setembro", do Amazon Prime Video, e "O Rei da TV", do Star+.

O problema, porém, não está só em injetar dinheiro na indústria local para que novos conteúdos floresçam, mas também na preservação e distribuição de outras obras, em especial as independentes. Mafra, da Ancine, estima que elas representam uma porcentagem ainda mais tímida dos acervos, apesar de o relatório não chegar a tal nível de especificidade.

"A participação do conteúdo brasileiro no VoD segue o padrão dos outros segmentos, com grande predominância dos conteúdos estrangeiros. Esse é um comportamento comum na maior parte dos mercados audiovisuais, com exceção de poucos países, como a Coreia do Sul", diz ele, lembrando ainda França, Canadá, Portugal, Espanha, Itália e Suíça como exemplos de países que regulamentaram o setor de forma bem-sucedida.

São legislações que podem servir de espelho para o Brasil, ao definirem pontos como uma porcentagem mínima de produções regionais nos acervos e a conversão de lucros em investimento para a indústria. Na França, por exemplo, Netflix e companhia precisam destinar de 20% a 25% da renda no país para a criação de conteúdo local.

Uma das demandas do setor no Brasil é justamente a incidência da Condecine, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, que compõe o Fundo Setorial do Audiovisual, sobre as plataformas estrangeiras que atuam por aqui.

O pedido está contemplado por projetos de lei como o 483/2022, o 2.331/2022 e o 57/2018, de autoria do deputado David Miranda, do PSOL, e dos senadores Nelsinho Trad, do PSD, e Humberto Costa, do PT, respectivamente.

Para auxiliar no debate, Raquel Hallak, coordenadora da Mostra de Cinema de Tiradentes, que nesta semana exibe filmes da última edição do festival em São Paulo, fundou neste ano o Fórum de Tiradentes, iniciativa que reuniu cerca de 70 profissionais do audiovisual para elaborar uma carta com problemas e demandas para o setor.

Dividida em diferentes grupos de trabalho, a ação classifica como urgente a regulamentação do VoD. Na semana retrasada, alguns representantes entregaram a carta a Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, bem como a outras autoridades públicas. Eles se puseram à disposição para auxiliar no debate que se aproxima.

Hallak elenca como prioridades a garantia de direito de propriedade intelectual para o criador de obras lançadas no streaming, a transparência de dados de faturamento e visualizações e, claro, a garantia de exibição de conteúdo brasileiro nos serviços e a destinação de faturamento para fomentar a indústria.

"Não é uma discussão fácil. Há vários interesses envolvidos, e a gente não teve um cenário político favorável para o setor recentemente. A gente estava há quatro, seis anos apenas garantindo a nossa sobrevivência. E estamos falando de bilhões de reais de faturamento", afirma a coordenadora de Tiradentes.

É uma conversa longa e complexa que poder público, agentes do setor, plataformas de streaming e a população civil precisam ter, diz ela. Justamente por isso, o relatório recém-divulgado pela Ancine é de suma importância para facilitar e embasar o diálogo.

Dele, saíram ainda que o Brasil é o país onde há a maior oferta de plataformas de vídeo sob demanda entre as 20 nações da América Latina avaliadas. São 59 no total, à frente das 53 da Argentina e das 50 disponíveis no Chile. Isso atesta que o mercado já está suficientemente maduro e consolidado por aqui. Apenas seis dos 20 países da amostra têm mais de 40 plataformas disponíveis para os consumidores.

Por outro lado, o Brasil é o país com a menor média de preços para a assinatura de serviços de VoD, com um valor de US$ 5,64, sendo a assinatura de R$ 19,90 a mais praticada no país. O país onde o preço médio é mais caro é El Salvador, com US$ 10,03, seguido de Bolívia, com US$ 8,62, do território americano de Porto Rico, com US$ 8,44, e Guatemala, com US$ 8,26.

Mafra explica que o motivo para o valor reduzido se deve justamente à alta oferta de serviços. "O Brasil, dado seu tamanho e público consumidor, tende a ser um ambiente que oferece mais espaço para a criação de serviços de streaming voltados para nichos específicos", diz. "Com isso, há também uma grande variação no preço."

Segundo o relatório, a plataforma que concentra a maior parte das 32 mil obras disponíveis no VoD brasileiro é o Amazon Prime Video, com um catálogo de 5.800 filmes e 1.800 séries, que somam mais de 48 mil episódios. Ela é seguida pela Netflix, com 5.200 títulos no total.