Em 'Amadeo', tragédia de jovem virgem questiona o direito à morte e aos sonhos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ao elenco da peça "Amadeo", em cartaz no Tucarena, coube cindir o palco circular em duas instâncias, uma superior e outra inferior. É uma sensação provocada pelos atores em cena, mas assentada no texto escrito em 2012 pelo francês Côme de Bellescize.
O drama construído pelo autor alterna entre a delicadeza do sonho e a realidade trágica. "É uma peça com forte carga dramática, contada pelos sonhos. Primeiro, seduzimos o público e, depois, contamos uma história terrível", diz o diretor Nelson Baskerville.
Amadeo, vivido por Thalles Cabral, tem 19 anos, adora jogar videogames e sonha em ser piloto de Fórmula 1. Ele é virgem, então a humanidade também se divide em dois grupos: os virgens e os não virgens.
Júlia, sua ficante, vivida por Janaína Suaudeau, se dispõe a resolver o dilema, mas um caminhão bate no carro do garoto, deixando sua vida em suspenso. Ele entra em coma e passa a viver no leito do hospital.
"Amadeo" se torna, então, uma peça sobre a vida e a morte. Desenhado logo nas primeiras cenas, o contraste do texto impressiona. As angústias púberes do personagem são justapostas à autoridade materna e, por fim, ao próprio acidente.
Diante da ação teatral, as antíteses do texto são vivificadas em zonas de tensão, estabelecendo relações de conflito entre os personagens. Numa cena, a mãe aparece atada ao filho por uma longa sonda, por onde doa o seu sangue.
O longo fio pode ser interpretado também como um cordão umbilical, símbolo do desejo materno de reter o filho dentro de seu corpo. "É uma peça que pergunta como você quer morrer, sendo que, muitas vezes, seu desejo não é atendido", afirma Baskerville. "As pessoas, no cotidiano, querem esconder a morte, mas é muito importante reafirmarmos a mortalidade."
Em coma, Amadeo vive uma sequência de sonhos, em que contracena com Clóvis, um alter ego meio endiabrado vivido pela atriz Cláudia Missura. Nesse sentido, "Amadeo" é encenada como uma peça-sonho, ao modo do dramaturgo sueco August Strindberg.
Ao mesmo tempo, a morte é iminente, as visitas de Júlia se sucedem e, com o tempo, a equipe médica necessária para cuidar de Amadeo só aumenta. Em última instância, o acidente significa, para ele, um freio em sua pulsão de vida, interrompendo outros sonhos, os planos futuros, que passam a ser apenas planos.
Bellescize, o autor da peça, é conhecido no teatro contemporâneo da França. Com "Amadeo", foi indicado a melhor dramaturgo no Prêmio Beaumarchais, do jornal Le Figaro. Em 2004, criou a companhia Théâtre du Fracas ao lado de Vincent Joncquez. Como diretor, Bellescize se destacou com as montagens de "As Crianças do Sol", de Maxime Gorki, e "Ah! Annabelle?", de Catherine Anne.
Para a montagem brasileira, Baskerville se valeu de projeções para criar mais um plano semântico. É interessante notar que as imagens de André Grynwask e Pri Argoud não são refletidas numa superfície vertical, como no palco à italiana, preenchendo o espaço circular do teatro de arena.
Desse modo, a circularidade das imagens reforça a ideia de velocidade e radicalidade, tão cara aos videogames de Fórmula 1 e ao imaginário da virilidade masculina.
Ainda que o cenário seja despojado de adornos, há, na montagem, uma preocupação imagética, que se reflete na cena do salvamento. "Eu nunca tinha visto um bombeiro numa peça de teatro, foi a primeira coisa que me chamou a atenção no texto", diz Baskerville. Em cena, as capas dos bombeiros refletem as luzes dos holofotes, criando uma atmosfera épica.
"A arte falhou, o teatro brasileiro perdeu o costume de propor discussões. De repente a Igreja, por exemplo, teve o monopólio do debate sobre a vida", afirma o diretor. "O teatro crítico, que foi tão importante na ditadura, perdeu espaço e hoje é criticado, dizem que fazemos peças para cem pessoas, o que é uma bobagem. Tem espaço para tudo."
AMADEO
Quando Sex. e sáb., às 20h30; e dom., às 18h. Até 28 de maio
Onde Tucarena - r. Bartira, 347, São Paulo
Preço R$ 120
Classificação 16 anos
Autor Côme de Bellescize
Elenco Thalles Cabral, César Mello e Chris Couto
Direção Nelson Baskerville