Filme com Mia Wasikowska alfineta negacionismo com jovens famintos em Cannes

Por LEONARDO SANCHEZ E HENRIQUE ARTUNI

CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) - Foi com um dia morno que Cannes entrou em sua segunda semana. Ao menos na competição. Com a estreia em caráter especial da série "The Idol", que vem pegando fogo, a dupla de longas da mostra principal desta segunda não teve muita atenção.

"Fallen Leaves", do finlandês Aki Kaurismäki, abriu o tapete vermelho com discrição e foi seguido por "Club Zero", da austríaca Jessica Hausner, este mais chamativo, com Mia Wasikowska à frente. Ambos flertam com um humor inocente por fora, mas provocativo por dentro, apesar de serem radicalmente diferentes.

"Club Zero" tem uma afetação que lembra um filme de Wes Anderson, cineasta que exibe seu concorrente à Palma de Ouro, "Asteroid City", nesta terça. Não há paleta tirada de uma caixa de macarons, mas Hausner também brinca com as cores. Ela faz o mesmo com os enquadramentos, as caras e bocas do elenco e o roteiro sem muito sentido.

O filme começa vibrante, com tons de verde e amarelo vivos que vão se intimidando lentamente conforme a professora protagonista da trama começa sua lavagem cerebral num grupo de estudantes dispostos a entrar numa espécie de reeducação alimentar.

Os métodos da professora, vivida por Wasikowska, são no mínimo problemáticos. Ela convence os pupilos a diminuírem o consumo de comida aos poucos, até que as dietas se resumam a um chá milagroso que ela distribui pela escola. "Você precisa comer para ficar vivo", observa um deles no começo do processo. "Nós não precisamos que a ciência prove algo que funciona", responde outro.

Assim, "Club Zero" ataca o negacionismo dos tempos atuais, por meio de uma seita radical que refuta o bom senso. Com sadismo, critica uma geração movida por modismos e bobagens, embora apresente um desfecho decepcionante, que põe a perder todo o resto da trama com sua visão abstrata da desigualdade social e do ambientalismo.

Hausner não é nova em Cannes, mas nesta edição está ao lado de veteranos como o próprio Kaurismäki, com seu "Fallen Leaves". O filme tenta dar a Palma de Ouro ao cineasta que já levou diversos prêmios do júri desde os anos 1990.

Seu humor nórdico segue intocado e despertou gargalhadas seguidas de aplausos ao final, algo raro. Os desajustados da vez são Ansa, papel de Alma Pöysti, e Holappa, vivido por Jussi Vatanen.

Ela é supridora num supermercado, ele faz bicos na construção civil. Ela é demitida por tentar levar um lanche estragado para casa, ele por beber durante o trabalho. Eles se cruzam num karaokê e trocam olhares. Tímidos, só vão falar um com o outro dias depois, quando Ansa fica sem emprego de novo.

Vão ao cinema, e ela lhe dá seu telefone. Ele perde o papel segundos depois, quando saca um maço de cigarros. Vão se sucedendo erros e tragédias até que o casal possa trocar afeto em um silêncio constrangedor, com atuações robóticas.

No rádio, circulam notícias da Guerra da Ucrânia. Mas Ansa quer algum sentimentalismo e muda para a estação de músicas melosas depois de ouvir sobre um bombardeio.

Curioso que esta comédia romântica às avessas seja, por ora, o único longa na competição principal a trazer qualquer eco do conflito. O assunto surgiu com bem menos destaque do que no ano passado, quando Volodimir Zelenski discursou na abertura.

Desta vez, Catherine Deneuve recitou um poema de uma autora ucraniana, enquanto uma transeunte do tapete vermelho, em vestido brilhante azul e amarelo, estourou um saco de sangue em si mesma.

Kaurismaki não inova, mas sabe ser cômico e gélido. Em meio a filmes de três horas, um de uma hora e vinte é um bálsamo e lembra que é preciso rir com o falso glamour da Riviera.

O jornalista Henrique Artuni viajou a convite da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.