Paulo Mendes da Rocha tem seu acervo doado a Portugal exposto pela primeira vez

Por SILAS MARTÍ

MATOSINHOS, PORTUGAL (FOLHAPRESS) - Paulo Mendes da Rocha está de volta à beira do mar. Isso depois de pensar em queimar todos os seus arquivos. Muitos deles, centenas de croquis de um total de dezenas de milhares, agora ressurgem junto de cartas, lembranças e fotografias de uma vida dedicada à construção de espaços, muitas vezes com palavras antes de as ideias traçadas a lápis chegarem ao concreto.

O arquiteto nascido em Vitória dizia se lembrar até o fim da vida do cheiro da fermentação dos grãos nos armazéns do porto, o perfume delicioso da lenha queimando no fogão das cozinhas e o ranço do diesel que movia os navios. Agora, dois anos depois de sua morte, Mendes da Rocha tem parte vasta -e afetiva- de sua obra mostrada nos arredores do Porto, o lado oposto do Atlântico de sua infância.

Essa mudança de todo o seu acervo para Portugal, desgostosa para muitos no Brasil, foi uma decisão do arquiteto, concretizada em seu último ano de vida, evitando deixar problemas, ele dizia, para ninguém da família. Os 30 mil itens -entre desenhos, plantas, maquetes e peças de mobiliário- passaram por extensa catalogação. Até agora algumas centenas deles virem a luz do dia numa das maiores mostras já realizadas sobre o vencedor do Pritzker, o prêmio máximo da arquitetura.

O destino das obras, e mesmo o conceito da exposição que se desenharia já na ausência de Mendes da Rocha, foi traçado numa conversa em São Paulo. Nuno Sampaio, o diretor da Casa da Arquitectura, museu em Matosinhos, vilarejo de praia às margens do Porto, conta que ouviu o arquiteto dizer que pensava em fechar o escritório e incinerar tudo, um devaneio de tarde da noite que, no entanto, tinha um fundo de verdade. Era sua vontade de "ir arrumando a vida", lembra Sampaio.

Entrar no museu já revela a arrumação. Todo o acervo, fileiras intermináveis de prateleiras metálicas, maquetes e gabinetes de desenhos e croquis, é visível atrás da parede de vidro do saguão, como se o espaço tivesse orgulho das entranhas, que dão vida às mostras em cartaz e evitam que tudo não passe de um depósito letárgico. O ar é de laboratório pulsante, não de biblioteca morta.

Isso se reflete no desenho da mostra. Não é uma exposição estéril de arquitetura, que exalta o traço do arquiteto em maquetes imaculadas e fotografias que dão ar monumental -para não dizer sepulcral- a espaços do dia a dia que transbordam a imprevisibilidade de estar vivo, do cheiro do café no fogão ao cão que late a distância ou a gritaria de crianças brincando no pátio. A intenção dos organizadores, o francês Jean-Louis Cohen e a brasileira Vanessa Grossman, é desfazer a imagem de austeridade brutal cristalizada em torno do arquiteto, revelando a inesperada doçura do mais duro concreto.

"Não é uma mostra silenciosa", diz Cohen. "Não queríamos que o ar da montagem fosse triunfal, de céus azuis, paredes brancas, que não fossem só maquetes, mas que tudo deixasse transparecer essa sensação cinzenta de São Paulo."

Mendes da Rocha, de fato, escreveu sua história no modernismo do século 20 em linhas retas de concreto aparente, o tal brutalismo que marca a maior metrópole brasileira. Liderou a chamada escola paulista ao lado de outro mestre, Vilanova Artigas, também conhecido pelo espetáculo da estrutura de seus prédios sem pele, como a sede da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

O movimento, ancorado na beleza estrutural das construções, aquilo que as faz ficar de pé, ficou marcado pela ideia do impessoal, da precisão matemática manifestada na aspereza e rusticidade dos acabamentos, do menos é mais, o esqueleto em detrimento da carne.

Existe, porém, e isso a exposição revela de cara, uma delicadeza quente ao toque nas mais robustas construções, sem falar no ar de fantasia do desafio à gravidade. Mendes da Rocha jogou ao longo da vida muito bem com o contraste entre peso e leveza, um equilíbrio ao mesmo tempo tortuoso e magistral, que dá a sensação de estruturas acachapantes flutuarem no ar suspensas por fios finíssimos ou equilibradas sem explicação, como que por acidente.

Isso é visível no Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia, o MuBE, em São Paulo, uma das obras-primas do arquiteto destrinchadas na mostra. Num declive em relação ao nível da avenida, a construção desaparece no horizonte. Na comparação de Vanessa Grossman, é quase um sítio arqueológico, uma praça afundada no terreno, uma grande esplanada protegida pela geografia do lugar debaixo de uma viga em suspenso. Poucas construções atingem a um só tempo esse efeito de ser tão monumental quanto invisível.

Obra da juventude, o ginásio do Clube Athletico Paulistano funciona com o mesmo partido. É um grande círculo de diâmetro mais largo no topo e menor, em proporção, na base -uma cúpula invertida ou disco que paira no terreno sem agredir a terra, como se tivesse pousado ali sem esforço construtivo, ruído ou maquinário pesado.

Esse dado da obra de Mendes da Rocha, aliás, estabelece diálogo fortíssimo com os colegas portugueses também vencedores do Pritzker. Álvaro Siza, nos arredores do Porto, fez uma casa de chá fundida às rochas à beira-mar, da mesma forma que suas piscinas de geometria marcadíssima construídas na praia se fundem com os acidentes da costa do Atlântico.

Eduardo Souto de Moura, que desenhou a extensa linha férrea que é o metrô de superfície do Porto, se vale do mesmo invisível como força motriz, o traço mais leve que detona o impacto potente, o mesmo jogo de peso e leveza.

Souto de Moura, não por acaso, foi o arquiteto escolhido para desenhar a mostra agora em Matosinhos. Sem paredes, é uma longa galeria cortada ao meio por uma mesa de traços delicados, onde se deixam ver os desenhos e cartas de Mendes da Rocha.

"Trabalhamos muito juntos aqui, tomando uma taça de vinho", lembra Cohen. "Eduardo era muito hostil à ideia de mostrar desenhos originais porque ele não queria uma galeria escura, por causa da conservação das obras, mas eu disse que havia um dever de mostrar esses desenhos depois que eles foram trazidos para a Casa da Arquitectura."

Nesse sentido, é nítido o esforço do museu português de enquadrar Mendes da Rocha como um mestre do modernismo mundial, em estreita ligação com seus pares portugueses, e ao mesmo tempo ressaltar suas raízes profundas, uma na Vitória de frente para o mar, outra na São Paulo onde construiu toda a sua vida.

"Sabemos que a conexão dele com São Paulo é visceral e também com a cidade da sua infância, que se abre para o Atlântico e faz esse diálogo muito forte com Portugal", diz Grossman. "É por isso que fez barulho quando tudo isso deixou o Brasil, mas a obra tem dimensão cosmológica. Ele tinha relações com o Japão, participou de concursos internacionais e foi reconhecido em vida."

"Ele ainda doou obras ao Pompidou, em Paris, e ao Museu de Arte Moderna de Nova York", diz Cohen. "Ele reivindicava sua presença ao lado dos arquitetos que conhecia."

Documentos na mostra, aliás, repassam essa trajetória. Há desde o projeto de Mendes da Rocha para a sede do Pompidou, que acabou rejeitado para a construção da obra atual de Renzo Piano e Richard Rogers, uma reportagem da revista Projeto que mostrava sua proposta jamais construída para o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo ao lado do Masp, de Lina Bo Bardi, toda a documentação em torno do pavilhão brasileiro na Exposição Universal de Osaka, em 1970, que tentou driblar a censura do regime militar.

Nesse ponto, chamam atenção os desenhos de Flávio Motta que dariam origem aos painéis da presença brasileira no evento japonês, da "Negra" de Tarsila do Amaral a desenhos de Debret, Rugendas e ao então atualíssimo Volpi, joia perdida da nossa história esmagada pela ditadura.

Em torno de todos esses documentos, naquilo que os organizadores chamam de espinha dorsal da mostra, dez filmes inéditos, obras de Ciro Miguel e Felipe de Ferrari, mostram o mundo real, não encenado, de grande parte das construções de Mendes da Rocha.

Real no sentido de habitado, vivido. Numa sucessão de escalas, da menor à maior, a mostra apresenta logo no início a Casa Butantã, obra que Mendes da Rocha construiu no bairro da zona oeste paulistana como morada da família.

É uma casa-manifesto, com toda a estrutura de concreto aparente e paredes que brotam do chão sem nunca encostar no teto, a ideia de praça pública transposta ao ambiente doméstico, e ao mesmo tempo uma casa habitada por pessoas. Há o mobiliário incongruente com o brutalismo minimalista, da cristaleira rococó ao cestinho prosaico de lixo, e as janelas abertas à metrópole ruidosa lá fora -a cidade adentra a casa, que é também microcosmo da cidade.

Outra obra pouco conhecida, a Casa Gerber, no litoral fluminense, é um exercício parecido, um pavilhão de concreto quase todo vazado nas laterais que se abre para o mar, abraçando as pedras na praia. O contato com a água, a verdadeira obsessão do arquiteto pelo que chamava de territórios ganhos do mar, o sonho de um império de navegação fluvial que se espalhasse por toda a América do Sul, o escândalo estrutural da cidade italiana de Veneza, tudo se manifesta em vários traços e sua vontade de construir obras atravessadas pela geografia ao redor.

No vocabulário de Mendes da Rocha, aliás, acidente geográfico talvez soasse como um palavrão. O arquiteto costumava repetir, em longas entrevistas em seu escritório no centro paulistano, que o homem olha a natureza e escolhe onde construir, não por acaso, mas por decisão. Na visão idealista, da ordem de todas as estruturas possíveis, Mendes da Rocha enxergava a paisagem como prancheta infinita, cada pedregulho um possível pilar de sustentação.

Esse traço do possível, sempre mais possível que impossível, não por acaso norteou boa parte dos desenhos de Mendes da Rocha até a fase madura. O arquiteto, que nunca encostou os dedos num teclado de computador, como bem lembra Cohen, um dos organizadores da mostra, trabalhou até o fim de seus dias num espartano escritório no quinto andar do Instituto de Arquitetos do Brasil, em São Paulo. Lá dentro, milhares de arquivos de papel transbordavam das prateleiras e uma lousa imensa servia de arena de testes.

Mendes da Rocha falava desenhando e desenhava falando. Sua maneira de construir cenários com descrições precisas tinha algo de cinematográfico demais para ser verdade, mas era uma realidade desejada. E ele parecia ter encampado a ideia da construção do desejo como missão na arquitetura.

É sua tal "visão erótica da vida", como lembra Guilherme Wisnik, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo, ao dizer que Mendes da Rocha priorizava a arquitetura oportuna no lugar daquela funcional.

Não que ele não fosse reconhecido por esses dois lados de qualquer obra arquitetônica bem-sucedida. Sua intervenção na Pinacoteca do Estado de São Paulo, prédio de Ramos de Azevedo revisto por ele na década de 1990, é um exemplo de obra que reforça a circulação entre as galerias e ilumina os espaços com a fina retícula de claraboias no teto. É oportuna, nos limites do respeito ao original, e funcional, pensando no enorme fluxo de frequentadores do museu.

"Ele era um homem que tinha relação com os construtores. Era um homem de canteiro de obras", lembra Cohen. "O projeto da Pinacoteca foi feito dentro do prédio, não no escritório para ser construído depois."

Na escala de um museu, ou grande praça aberta a toda a vida da cidade, seu último projeto concluído parte dessas estratégias. O Sesc 24 de Maio, no coração de São Paulo, é outra intervenção sublime do arquiteto num prédio já existente, a antiga loja de departamentos Mesbla. A vitalidade da obra, com o vaivém infinito de frequentadores de exposições, de peças e shows no teatro, é mais que evidente. Nesse sentido, é mesmo o triunfo da arquitetura, a ideia de casca que protege das intempéries enquanto é um vetor da vida.

Se isso parece vago, Mendes da Rocha, vale lembrar, não gostava de falar em termos técnicos. Não respondia por que amava mais os ângulos retos ou por que decidiu que a luz viesse da praça embaixo de um museu. Toda resposta tinha a ver com o caos da vida de que ele tanto gostava. No aniversário de dois anos de sua morte, a arquivista da obra, Catherine Otondo, riu ao lembrar o que ele estaria fazendo agora. Estaria tomando um uísque.