'Eo', com história de burro, reforça harmonia entre homem e natureza
FOLHAPRESS - Jerzy Skolimowski, que nunca foi de fazer concessões, ressurge entre nós com "Eo", o filme que lhe deu o prêmio do júri no Festival de Cannes do ano passado. É bom avisar desde já: o cineasta polonês continua sem fazer concessões; talvez por isso tenha ficado quase 20 anos sem filmar.
"Eo" remete, de maneira direta ao Robert Bresson de "A Grande Testemunha" -mais conhecido pelo nome original, "Au Hasard Balthazar"-, em que o mestre francês narra as aventuras de um burrico levado ao acaso de um lado para outro, conforme determinado pelos humanos, cujas misérias acompanha.
Bresson não era um otimista em relação à nossa espécie; ainda assim, sua preocupação essencial era com o homem. Skolimowski parece se incomodar mais com esse animal praticamente anônimo que frequenta seu filme.
Seu nome é Eo. É assim que o chama Kasandra, a bela domadora do circo em que ele vive, mas o próprio nome já designa sua impessoalidade: trata-se da onomatopeia que remete ao som emitido por esse animal.
Desde as primeiras imagens o cineasta chama a atenção para o olhar do burrinho. Um olhar que pouco nos diz, na medida em que parece aceitar tudo que lhe é imposto. Logo no início Eo, enquanto puxa uma carroça, tem o azar de atravessar uma manifestação de pessoas de boa vontade que reivindicam liberdade para os animais. Eo é libertado por eles, ou seja: sequestrado do circo e jogado no mundo sem qualquer proteção.
O filme não economiza ironia em relação às boas intenções desinformadas dos humanos, mas também lança uma indagação sobre o que é realmente a liberdade. Talvez em muitas situações ser livre signifique apenas estar submetido a alguma tirania.
A tirania dos homens, no caso de Eo. Ele será levado de cá para lá sem que seu olhar se altere. Sempre neutro, ele está disposto a absorver sem queixas o que der e vier: de ser golpeado a ser afagado, passando pela perspectiva de servir de carne para salame. Eo é bem diferente dos cavalos com os quais convive em alguns momentos, com seus pescoços empinados e o olhar altivo, eventualmente rebelde.
A circulação de Eo pelo mundo remete não raro à natureza, como no momento em que passa diante de grandes pás de captação de vento para produção de energia eólica, ou atravessa uma ponte diante das cachoeira de uma hidroelétrica, ou algo semelhante.
De modo bem eloquente, Skolimowski parece nos lembrar que homens, animais e natureza formam um conjunto.
É claro, no entanto, que tudo isso são conjecturas precárias, sugeridas por um filme em que os sentidos se acumulam e se transformam a cada novo olhar de Eo. Assim, as cenas em que Kasandra demonstra sua afeição pelo burrinho entram como se o próprio Eo estivesse lembrando desse momento feliz, pleno de afeto. Notação que seria um pouco sentimental, não fosse a secura com que o diretor conduz a trajetória de seus personagens, entre humanos e não humanos.
Talvez o espectador brasileiro, quase sempre acostumado às facilidades do cinema contemporâneo, possa estranhar a construção tão caracteristicamente moderna do filme.
Mas é isso: Skolimowski faz parte de um tempo em que um filme não se confundia obrigatoriamente com uma história -algo que cineastas orientais ainda cultivam; os ocidentais, muito raramente-, nem com prato pronto, à maneira de séries de streaming.
Sua forma aceita o mistério e a opacidade, nos coloca diante do sentimento de estranheza que se desprende de suas imagens. É preciso encarar esse radicalismo para gostar deste filme.
Quem fizer um esforço, no entanto, se verá diante de um espetáculo que impressiona não apenas pela beleza das imagens, mas pela diversidade dos sentidos que o autor vê na aventura da Terra, o que inclui homens e animais, mas também ventos, águas, paisagens, alimentação, os sons, a violência -tudo que passa pelo amplo quadro de significações contidas nas imagens.
Quanto à violência, é exercida de maneira quase absoluta pelos humanos neste filme tão belo e tão enigmático.
EO
Avaliação Muito Bom
Onde A partir de quinta (1°) nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Sandra Drzymalska, Lorenzo Zurzolo e Isabelle Huppert
Produção Polônia, Itália, 2022
Direção Jerzy Skolimowski