Casamento de Zé Celso reúne multidão de artistas em rito com críticas a Silvio Santos

Por CLAUDIO LEAL

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Merda!". A voz de José Celso Martinez Corrêa, 86, atravessou a porta de ferro do Teatro Oficina, em São Paulo. "Merda!", repetiram os atores. Às 21h21, em trajes brancos, o ator Marcelo Drummond, 60, conduziu seu noivo pela rampa do Oficina, em cuja base estavam as cadeiras de convidados. "Evoé!", gritava Zé Celso, ao som da bachiana brasileira Nº 5, de Villa-Lobos.

De caráter afetivo e político, o casamento celebrou uma união de 36 anos, agregou aliados históricos do Oficina e esboçou o futuro da companhia.

Logo atrás do casal, a atriz Helena Ignez, madrinha, e o diretor regional do Sesc, Danilo Miranda, acompanhado de sua mulher, a assistente social Cleo Regina. Sem esperar o fim dos aplausos, a cantora Marina Lima subiu ao palco para cantar "Fullgás", sua parceria com Antonio Cicero, a música de fundo do primeiro encontro de Marcelo e Zé Celso, em 1987, no Rio de Janeiro.

Antes da festa, Marina comentava sua surpresa com o convite. "Eu não sabia que essa canção era tão importante para eles. Uma noite, em Ipanema, na praia, já de madrugada, eu os encontrei e ficamos conversando por duas horas na areia. Mas não me falaram disso", ela lembrou.

Durante o número, o diretor teatral cantou e gesticulou os versos "você me abre seus braços/ e a gente faz um país". "Viva os noivos!", saudou Marina Lima.

No teatro, estavam reunidos amigos, membros da companhia e os penetras postos alegremente para dentro do Oficina. Na plateia, o cineasta Júlio Bressane e sua mulher, a professora de filosofia Rosa Dias, a cantora Daniela Mercury e sua esposa, a jornalista Malu Verçosa, as atrizes Bárbara Paz, Alanis Guillen, Júlia Lemmertz, Regina Braga, Andréia Horta, Michele Matalon e Djin Sganzerla.

E ainda: o médico Drauzio Varella, os deputados estaduais Eduardo Suplicy (PT) e Carlos Giannazi (PSOL), a deputada federal Luciene Cavalcante (PSOL), o músico José Miguel Wisnik, os atores Renato Borghi, Pascoal da Conceição, Júlio Andrade e Guilherme Leme, o arquiteto Isay Weinfeld e a diretora Monique Gardenberg.

"Conheci Zé há mais ou menos dez anos e vim algumas vezes aqui no Oficina. Converso muito com ele sobre a antropogafia. Nós fizemos juntos uma música, ?Macunaíma?. Ela fala de floresta, semana de 1922, modernismo, Macunaíma, Mário de Andrade fora do armário. Foi Zé Celso quem tirou Mário do armário", brincou Mercury, na chegada.

Depois de Marina, três guaranis iniciaram um cântico, marcando a aproximação do Oficina com os povos originários nos meses de preparação da montagem de "A Queda do Céu", o clássico contemporâneo do xamã yanomami Davi Kopenawa. Dirigido pelo ator Ricardo Bittencourt, o "rito artístico-ecumênico" de "união amorosa, criativa e orgiástica" respeitou a aproximação de Zé Celso com o candomblé e as religiosidades indígenas.

O babá Márcio Teles, também ator do Oficina, gritou "laroyê, Exu", entoou "Emoriô" e fez um ebó de afirmação. "O Oficina é um terreiro eletro-candombleico", disse, agradecendo a Olorum e aos orixás funfuns. "Obará prosperidade! Obará Axé!". Em outro momento, a atriz e cantora Zahy Tentehar fez uma oração indígena diante do casal.

O profano se manifestou no piano de Zé Miguel Wisnik. "?Soneto do Olho-do-Cu?, de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, traduzido e transcriado por Zé Celso e Marcelo Drummond para a peça ?As Boas?, de Jean Genet", anunciou Wisnik, nome central nas realizações musicais do Oficina.

Com os cantores Celsim, Mariana de Moraes e Marina Wisnik, o artista regressaria ao palco para apresentar as músicas das quatro estações compostas para a companhia. "A primavera é quando ninguém acredita/ e ressuscita por amor".

Bittencourt, apresentador da noite, chamou o evento de "o casamento do século", minutos antes de passar o microfone para Helena Ignez, a "Buda Baiana", e Danilo Miranda, "o Espírito Santo".

"Esses dois são amores. Zé é um amor da vida inteira, meu mestre, tem meu corpo. Esse casamento faz um país. É muito amor, Zé. E de todos os que te amaram. Meus homens", sorriu Helena, referindo-se aos ex-companheiros Glauber Rocha e Rogério Sganzerla. Miranda, apoiador da companhia há 30 anos, celebrou o diretor como "um farol".

Os atores do presente e do passado do Oficina trouxeram força cênica à festa. Bete Coelho recitou um discurso amoroso de Sócrates em "Fedro", de Platão. Camila Mota dedicou aos colegas uma canção do repertório da companhia. E um grupo com tochas seguiu até os noivos.

Entre eles, Alexandre Borges e Mariano Mattos Martins, que viveu Sílvio Santos na série "O Rei da TV". Mariano apareceu vestido com o figurino de listras vermelhas do desafeto do teatro. Numa roda ainda maior, dezenas de atores cantaram os choros nº 10 de Villa-Lobos.

O casamento virou um ato político pela criação do Parque do Rio Bixiga no terreno do grupo do comunicador Sílvio Santos. Há quatro décadas o Oficina resiste à criação de empreendimentos imobiliários. "Eu acho que o melhor presente que o Sílvio Santos pode dar a Zé e Marcelo é um acordo em forma da criação do Parque do Rio Bixiga", discursou Eduardo Suplicy.

Nessa altura, Marcelo Drummond o interrompeu para avisar que um oficial de justiça o acordara naquela manhã, no bairro do Paraíso. Segundo o ator, o grupo Sílvio Santos tentou proibir que o terreno ao lado sofresse qualquer intervenção durante o casamento.

"Não podemos plantar a árvore dada por Fernanda Montenegro sob pena de multa de R$ 200 mil. Foi o presente de Silvio Santos. Dele não espero muita coisa", criticou Drummond.

Em seguida, um dos fundadores do Oficina, o ator Renato Borghi, lembrou o dia de 1961 em que ingressou no espaço com o amigo. "Meu Deus, que trabalho imenso José Celso fez! Não só como diretor de espetáculo, mas como construtor deste teatro", declarou Borghi, com a voz emocionada, mirando a estrutura da plateia. E voltou a olhar para Zé Celso. "Eu posso dizer muitas coisas, mas vou dizer uma coisa só: meu primeiro grande amor!".

No alto da rampa, empertigada, outro mito do Oficina e das passarelas, a atriz e modelo Vera Barreto Leite, encarregada de levar as alianças até os noivos. Às 23h17, Marcelo e Zé Celso disseram "sim" um ao outro. "Eu vos declaro marido e marido", disse a "juíza de amor e de paz" Cris Olivieri. Chuva de pétalas.

"Eu estou aqui nessa cadeira de rodas porque tive um acontecimento recente. Foi o marco temporal [das terras indígenas]", explicou Zé Celso, no início do discurso de noivo.

"No dia em que eu soube do marco temporal, esse marco que o fascismo do Congresso brasileiro decretou, eu dei um berro enorme e saí desesperado, andando de quatro, com as duas mãos. Aí veio essa diverticulite, a mesma coisa que aconteceu com Tancredo Neves. Eu já tive uma vez que eu enchi a cara no Natal. Dessa vez foi isso. Estou trabalhando na ?Queda do Céu?, soprado pelo xamã Davi Kopenawa ao antropólogo francês Bruce Albert. Estou ligadíssimo à questão indígena".

"Silvio Santos, hoje, presenteou este casamento com uma ação judicial", declarou o diretor. "O ipê foi um presente de muita imaginação [de Fernanda Montenegro e Fernanda Torres]. Neste momento, a gente pretendia plantar essa árvore, que ainda nem chegou. Mas já veio essa ação. Mas faz 41 anos que essa luta existe. E durante 41 anos não aconteceu nada".

"Hoje foi um dia totalmente dedicado à beleza", completou. "Nosso casamento visa a longevidade do Teatro Oficina". No fim, Daniela Mercury cantou "Terra", de Caetano Veloso, e "Macunaíma", sua recente parceria com Zé Celso.

Na roda de música, despontou a escola de samba Vai-Vai, sediada no Bixiga. O diretor teatral se levantou da cadeira de rodas e beijou a bandeira. A alguns, ele dizia no ouvido: "Que festa!".