Como o Homem do Sapato Branco ajudou a moldar o mundo cão da TV brasileira

Por MAURÍCIO MEIRELES

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Sobe a trilha de horror. Na tela, um homem caminha pela noite. Sua sombra se projeta nas paredes dos becos, os sapatos reluzem nas calçadas. De repente, ele aparece na penumbra de um estúdio de TV, o espectador prende a respiração. Vai começar O Homem do Sapato Branco.

Esse é o apelido famoso. O nome real é Jacinto Figueira Júnior, que foi um dos precursores do sensacionalismo nas telinhas do país. É ele o assunto do livro "O Homem do Sapato Branco: A Vida do Inventor do Mundo Cão na Televisão Brasileira", publicado pela editora Todavia, do jornalista, crítico de TV Mauricio Stycer.

Por mundo cão, entenda programas que transmitiam cirurgias, barracos de vizinhos, médiums demonstrando habilidades, um homem que se dizia grávido, ceias para mendigos e confusões na rua. Claro, também os casos policiais, que mais tarde seriam tema de vários imitadores de Jacinto.

"Sempre me interessaram as ondas de sensacionalismo na história da TV brasileira", diz Stycer. "Em diferentes momentos, há um excesso de apelação e, depois, um refluxo. Em um momento, tive a ambição de fazer uma história do sensacionalismo."

Escolheu Jacinto porque, a partir da trajetória dele, é possível ver como esse tipo de programa se estabeleceu no país.

Entre os anos 1960 e os anos 1990, com intervalos e um período de ostracismo no meio, o apresentador teve várias encarnações na TV, dos primórdios da TV Cultura --que ainda tinha Assis Chateaubriand como dono-- aos primeiros passos da TV Globo e do SBT.

Começou como produtor no Câmeras Indiscretas, na Cultura, onde fez parte de um evento histórico das telas brasileiras: a exibição de um transplante de córnea em uma garota. "Meia São Paulo pediu a Deus que, pela mão dos homens, devolvesse a visão à menina", relatava a imprensa.

Como apresentador, o primeiro programa foi Um Fato em Foco e, depois, veio O Homem do Sapato Branco, ambos na Cultura. Este, responsável pelo apelido de Jacinto, faria um périplo por vários canais nos anos seguintes.

Foi acusado de promover um show de horrores nesse caminho. Em uma hora, supostos criminosos eram exibidos no palco pela polícia, com algemas nos pulsos. Podiam ser cobrados pelo Homem do Sapato Branco com voz severa: "Quantas vezes você já roubou?", indagava, antes de desferir um tapa na cara de uma mulher.

Em outros momentos, Jacinto prometia resolver conflitos de vizinhos --caso dos moradores de um cortiço onde o senhorio tinha baixado uma norma proibindo sexo, a não ser que o locatário desse "autorização expressa". Não era incomum que tudo descambasse para confusão no palco.

Por trás de tudo, uma promessa que soava como novidade na televisão do período: mostrar a verdade, nada mais do que a verdade.

Só que não era bem assim. E a verdade, nesse caso, depende do gosto do freguês. O livro de Stycer confirma, por meio de depoimentos, o que à época era apenas uma suspeita forte na crítica: muito do que era levado ao programa era encenação.

Às vezes as histórias eram até reais, mas representadas por atores, e também não era incomum que a produção desse uma forcinha para que os casos descambassem em baixaria diante das câmeras. "As histórias eram verdadeiras, os personagens não", diz um dos entrevistados pelo autor.

"Tem um crítico que fala em drama fabricado", afirma Stycer. "O que o Jacinto sempre usou como argumento de defesa é que aquilo representava uma versão da verdade."

O livro também reconstrói a curta carreira política de Jacinto como deputado estadual em São Paulo até o momento em que ele perde o mandato junto a outros políticos, que têm os direitos cassados pelo Ato Institucional 5, durante o regime militar.

Stycer teve acesso a documentos da ditadura que ajudam a iluminar como o Homem do Sapato Branco era visto pelas elites políticas. Na sessão que suspendeu os direitos políticos dele, o próprio presidente Artur da Costa e Silva diz que Jacinto é "uma das maiores calamidades" de São Paulo.

O autor do livro aponta que o apresentador ofendia o gosto das elites políticas e culturais do momento.

"Acho importante registrar que há um preconceito também", diz. "O Jacinto várias vezes foi objeto de pedidos de censura. Não só do Estado, mas também da mídia. Eu cito exemplos de veículos de imprensa que eram censurados e festejavam a censura a ele."

Quando é cassado, Jacinto já era uma celebridade, com a vida acompanhada por veículos como o Notícias Populares, onde ele chegou a escrever uma coluna nos anos 1980 --nos textos, gostava de usar palavras como falcatruas, cascatas, vigaristas e charlatães.

O apresentador até trouxe inovações para a TV ao trazer para o debate público assuntos que não eram retratados ou ao mostrar o que acontecia nas ruas, mesmo com câmeras difíceis de tirar do estúdio. Mas também deixou heranças problemáticas.

A proximidade com a polícia, sem questionar ações das forças de segurança, é algo que se repete em programas que retratam crimes hoje.

"Você vê programas que estão sempre com isso da exaltação, mesmo quando a polícia é violenta ou age de forma questionável. Jacinto é um dos pais disso", afirma Stycer.

O crítico de TV ainda vê a herança do personagem em programas que mostram casos de famílias ou vizinhos, com brigas no palco, e pautas de defesa do consumidor. A exposição de pessoas pobres --no geral negras-- a situações vexatórias também é algo que tem raízes no Homem do Sapato Branco.

"É uma televisão feita por gente numa situação de poder. São situações de muito desrespeito a pessoas humildes, que não entendem o impacto de aparecer num programa de TV", diz Stycer. "Tenho visto casos em que a Justiça reconhece que a pessoa foi vítima de humilhação, de acusação falsa, e deu uma melhorada. Mas é uma espécie de combustível desses programas."

Jacinto via em Carlos Roberto Massa, o Ratinho, um dos seus principais imitadores. Mas Stycer também vê pontos de contato entre o trabalho do Homem do Sapato Branco e outros produtos culturais, como a moda das histórias de true crime --ou a volta de programas como o Linha Direta, da TV Globo.

"Muitas vezes se faz uma tentativa de dar uma embalagem mais suave para coisas escabrosas. Esse resgate do Linha Direta é isso. A Globo podia fazer programas seríssimos, mas optou por um programa que, na origem, é ultrapopular, com reconstituições de crime meio grotescas", diz Stycer. "No Globoplay estão fazendo programas de crime sérias. E aí na TV aberta é essa coisa."

Para o crítico, o mesmo dilema da época de Jacinto continua a existir hoje na televisão: a mistura entre jornalismo e entretenimento, muitas vezes em prejuízo do jornalismo.

"Até hoje isso é uma causa de perda de credibilidade no jornalismo. Quando ele é misturado com o entretenimento, você desvia a atenção do espectador para aspectos apelativos, coloca em questão a verdade do que está sendo dito, transforma o jornalismo em show. Uma das motivações do meu livro é mostrar os perigos dessa mistura."