Com Gal Costa e Marina Sena, disco 'Biscoito Fino' resgata cem anos de música
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Os versos de Silas de Oliveira são conhecidos: "Vejam essa maravilha de cenário/ é um episódio relicário". Mas desta vez o histórico samba-enredo "Aquarela Brasileira", com o qual o Império Serrano desfilou em 1964, aparece diferente.
No andamento lento e no canto melancólico de Leci Brandão, a exaltação à exuberância do Brasil soa como lamento. Quando a voz de Edgar entra num rap que subverte os versos originais, o tom fica ainda mais nítido: "Caminhando um pouco mais/ me deparei com dois policiais/ tomando uma surra de um grupo de capoeiristas/ isso é o Brasil/ máquina de fazer artista".
A releitura de "Aquarela Brasileira" por Leci, Edgar, Rodrigo Campos e Jonathan Ferr é uma das 14 faixas de "Biscoito Fino", disco lançado pela gravadora de mesmo nome em celebração ao centenário da Semana de 22 -com atraso de um ano justificado pela pandemia.
Idealizado por Ana Basbaum, que também assina a direção artística, o projeto foi batizado a partir da frase de Oswald de Andrade: "A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico".
Na massa do biscoito do álbum, estão intérpretes como Maria Bethânia, Gal Costa, Arnaldo Antunes, Liniker, Criolo, Zélia Duncan, Arrigo Barnabé e Lenine.
Eles passeiam por canções que procuram traçar um painel da música brasileira contida nesses cem anos de modernismo, de compositores como Roberto e Erasmo Carlos, Sérgio Sampaio, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Itamar Assumpção, Dolores Duran e Caetano Veloso.
A leitura original do samba de Silas de Oliveira é representativa do painel desenhado por Basbaum e Renato Vieira, que juntos escolheram o repertório, e pelo diretor musical Guilherme Kastrup. Ou seja, um olhar para o legado da música brasileira feito a partir do Brasil contemporâneo. A história que se conta ali, portanto, ganha novos sentidos ao incorporar perspectivas femininas, negras, indígenas.
Tudo isso num cânone mais abrangente que o de costume, ao abraçar nomes que vão de Itamar a Gismonti, de Moacir Santos a Marília Mendonça.
Essa intenção aparece desde a faixa de abertura, a tropicalista "Geleia Geral", de Gilberto Gil e Torquato Neto. No disco, ela ganha as vozes de Assucena, Liniker, Letrux e Josyara.
"Há um peso em termos anunciando a geleia geral brasileira quatro mulheres que representam a música contemporânea, o Brasil de hoje", aponta Renato.
A ideia era tentar mapear o máximo de movimentos e momentos da música brasileira. "Incluindo os chamados malditos, como Itamar. Ele está no disco com 'Fico louco', numa gravação linda de Lenine com Anelis Assumpção", diz Basbaum.
"Os tropicalistas estão representados por Gil e Torquato, então buscamos um Caetano mais recente, 'Sem Samba Não Dá', que aqui é cantada por Jards Macalé e Criolo. Para a bossa nova pegamos duas composições de João Gilberto, 'Bim Bom' e 'Ho-ba-la-lá', interpretadas por Lucas Nunes, Dora Morelenbaum e Jorge Mautner. O axé vem na figura de Luiz Caldas, em dueto com Illy em 'A Vida do Viajante', de Luiz Gonzaga e Hervé Cordovil."
A gravação de "Deus lhe Pague", de Chico Buarque, também tem uma carga simbólica forte. A tensão do arranjo original ganha nova forma nas mãos do Metá Metá. Sobre ela, Bia Ferreira e Brisa Flow cantam com contundência, pondo a canção em outro lugar, num olhar feminino que aparece muitas vezes em comentários entre os versos. Como em "fazer a barba e partir", que ganha o complemento "enquanto a mama fica com a cria".
"Para Lennon e McCartney", última gravação de Gal, em dueto com Marina Sena, já está disponível nas plataformas como single desde dezembro. Nela, Brisa Flow, artista de ascendência andina e indígena, traz samples que bebem dessa raiz e acabam guiando o arranjo.
"Quis esse uso do canto dos povos originários para falar da América do Sul também como Abiayala, ou seja, como era chamada por seus habitantes antes da invasão europeia", conta Kastrup. "Nela, penso na Gal cantando um alerta para os povos originários: 'Porque vocês não sabem do lixo ocidental'."
Caymmi é lembrado em "Sargaço Mar", lida com beleza e densidade por Negro Leo e Arrigo Barnabé. O encontro de Bahia e São Paulo se dá também com Luedji Luna e Arnaldo Antunes em "Sentado à beira do caminho", de Roberto e Erasmo.
A tradição da música instrumental é revisitada por Bianca Gismonti em "Água e vinho", de seu pai Egberto. Da mesma forma, ela está representada em três diferentes momentos no medley que une "Coisa n º5", de Moacir Santos, "Honra ao Rei", de Letieres Leite, e "Dança (Bachianas brasileiras nº 4)", de Villa-Lobos -interpretadas pelo duo Gisbranco e por Kastrup.
"O que mais me chama atenção nessas faixas é perceber o diálogo entre os compositores e suas diversas impressões sobre um Brasil lírico e muito rítmico", analisa a pianista Claudia Castelo Branco, do Gisbranco.
"Villa-lobos trazendo os questionamentos da Semana de Arte Moderna de 22 e servindo de referência para Egberto Gismonti. Moacir Santos misturando os tambores afro-brasileiros com o jazz, e atuando como base para Letieres Leite."
Bethânia e Chico Chico fazem dueto em "Em nome de Deus", de Sérgio Sampaio, com o piano de Maira Freitas. "Sou fã do Sérgio, sempre fui", conta Bethânia.
"Esse convite para fazer uma canção dele me comoveu muito, particularmente por estar ao lado de Chico Chico. E o piano da Maira é um piano clássico, exuberante, lindo. Adorei fazer."
Dolores Duran e Marília Mendonça aparecem unidas num medley, com as vozes de Zélia Duncan e Letícia Soares e o acompanhamento de instrumentistas mulheres. São duas canções sobre o fim do amor, "Fim de Caso" e "Eu Sei de Cor".
"Dolores Duran é uma das maiores heroínas da música feminina no Brasil, uma pioneira, que falava de seu íntimo, com muita propriedade, apesar de tão jovem", observa Zélia. "E, nesse lugar, se encontra com Marília Mendonça. Mesmo sendo de estilos muito distintos, houve Marília porque houve Dolores."
BISCOITO FINO
Onde Disponível nas plataformas digitais
Autoria Vários intérpretes
Gravadora Biscoito Fino