Bruna Beber incorpora a Baixada Fluminense em poemas nascidos na música
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A poesia de Bruna Beber começa na rua Leopoldina Tomé. O convívio com as outras crianças do bairro Centenário, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, se dava numa rotina de brincadeiras de roda e contação de histórias, das tias e das avós que, debruçadas na janela, transmitiam uma sabedoria de décadas.
Em seu oitavo livro de poemas, intitulado "Veludo Rouco", a autora de 39 anos volta novamente à infância, agora em tom menor.
"Eu me distanciei da terra perdida. Abandonei a nostalgia que tinha ao escrever sobre a infância em livros passados. Quis historicizar esse período da minha vida, colocando no mapa uma infância na Baixada Fluminense", conta a autora.
Dividido em quatro partes, o livro tem seu esteio memorialista, evidenciado no início e no fim ?nas sequências "Amor e Morte" e "História e Geografia". São várias as vozes femininas que, emprestando seus nomes às composições, interpelam a leitura, recriando a paisagem social dos primeiros anos da poeta.
"Tu chupou/ manga/ com febre?", pergunta Tia Celi. "A vida é água purinha: banho, bibida e laranja", afirma Dona Maria.
Nessa sucessão de nomes, as vozes das mulheres aparecem e logo somem, como se resgatadas pela memória e, depois, obliteradas pelo tempo. São composições curtas, ambas de dois versos, que imprimem fugacidade à leitura e, formalmente, se filiam à tradição do poema-piada, reavivada na produção contemporânea.
No Rio, a imagem do passado é árida, de asfalto e concreto armado. São dias de sol, sem vento, longe do mar. "Peixe que é planta é pássaro/ (...) Arrastão no betume/ originário, buraco d?água/ afundo no zarcão da soleira", diz o poema "Imaginação querida,".
A beleza da natureza que se embrenha na cidade redunda no betume. Já a sequência de substantivos delimita a natureza descritiva do poema, com riqueza musical, atribuída pela repetição da letra "p" e o verbo "é".
É no esmero rítmico que Beber se distingue entre os poetas de sua geração. Seus livros são feitos para serem lidos em voz alta.
Não é por acaso. Beber descobriu a poesia pela música popular brasileira ?quando criança, participava das cantorias ao lado de seu pai, que trabalhava com turismo, e sua mãe, professora primária.
Aos sete anos, ela se lembra de ter ficado em terceiro lugar num concurso de poesia na escola. Na adolescência, foi procurar seus pares, entrando em sites que publicavam jovens poetas. Depois, decidiu estudar publicidade.
"Ninguém me conhecia, porque eu não era da zona sul. Perguntavam ?quem é essa garota de Caxias que não está no CEP 20.000, do Chacal?'", ela diz, mencionando um sarau organizado pelo poeta que, desde os anos 1990, revela novos autores cariocas.
Em 2006, Beber lançou seu primeiro livro, "A Fila sem Fim dos Demônios Descontentes". Depois, ainda vieram "Rua da Padaria", de 2013, e "Ladainha", quatro anos mais tarde.
"Eu me desafiei nesse livro. Peguei o meu projeto poético no chifre e mostrei que posso fazer o que quero", afirma. Em "Veludo Rouco", as cenas da Baixada Fluminense são recortadas, subitamente, pelas ruas de São Paulo, para onde ela se mudou em 2007.
Em seu extenso trabalho de reescrita, Beber conta ter, no mínimo, oito versões para cada poema. Ela também tem o hábito de os gravar e os escutar, para ver se soam bem ou não.
Mesmo com tanto trabalho, a nova obra realça a espiritualidade da autora. Umbandista, Beber teve criação católica e viu a Baixada ser tomada por igrejas neopentecostais. Folheando "Veludo Rouco", passamos os olhos por títulos ?ou letreiros? como "Gideão tá vendo" e "Absalão".
Ao contrário da maioria dos novos autores, Beber crê na poesia que nasce de uma experiência mística. À guisa dos rituais que transformam o cotidiano dos terreiros das religiões de matriz africana, ela está aberta a incorporar o acaso. "A poesia nasce do meu corpo. Eu incorporo a magia das coisas."
VELUDO ROUCO
Preço R$ 69,90 (104 págs); R$ 37,90 (ebook)
Autoria Bruna Beber
Editora Companhia das Letras