Como Édouard Manet treinou o seu olhar para a pintura no Rio de Janeiro
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 5 de fevereiro de 1849, o navio-escola Havre et Guadeloupe desembarcou na baía de Guanabara com dezenas de estudantes franceses a bordo, muitos deles ávidos por uma carreira militar.
Durante a viagem de seis meses, um dos aspirantes a marinheiro produziu desenhos marítimos e caricaturas dos colegas. O jovem Édouard Manet, então com 17 anos, regressaria à Europa, fracassaria no exame da escola naval e se tornaria o pintor responsável pela obra que é considerada o marco zero da arte moderna.
O livro "Manet no Rio", recém-publicado pela editora Ercolano, reúne as cartas redigidas pelo artista em sua visita ao Brasil, nas quais ele expõe impressões sobre o Rio de Janeiro, a escravidão, a claudicante república francesa e as inquietações naturais de um jovem que busca seu lugar no mundo.
Durante a viagem, Manet manteve correspondência com seus familiares e descreveu o cotidiano no navio, mas as cartas revelam um jovem que não olha para os trópicos com mera curiosidade exótica. Ao contrário, ele parecia querer compreender as complexas relações sociais que se desenrolavam diante de si.
Apesar da lucidez impressionante para a pouca idade, alguns preconceitos próprios da época ficam evidentes no relato. "Na rua só se encontram negros e negras. Os brasileiros pouco saem, e as brasileiras, menos ainda. Neste país, todos os negros são escravos. Todos esses desventurados têm o semblante embrutecido. O poder que os brancos exercem sobre eles não é normal. Vi um mercado de escravos, um espetáculo bastante revoltante para nós", escreve em carta à mãe.
Embora Manet condene a situação dos escravizados no Brasil, a França havia abolido a escravidão em seus territórios ultramarinos apenas um ano antes. "Não há relação direta entre a família Manet e a escravidão, mas a consciência desse jovem de que a escravidão era 'um espetáculo revoltante' só foi possível de existir em um mundo organizado a partir da mão de obra escrava", afirma o historiador da arte Felipe Martinez, que assina o posfácio do livro. "Na França não era tão diferentes assim."
Nas cartas, Manet externa preocupação quanto às eleições que aconteciam na França e chega a ser profético quanto ao caráter pouco republicano do candidato que seria eleito, Luís Napoleão. O sobrinho de Napoleão Bonaparte se autointitularia imperador após um golpe, em 1851, mantendo-se no poder até 1870. Já sobre o Brasil, as impressões do futuro artista variam com humor.
Se para ele "a baía do Rio é encantadora, povoada de navios de guerra de todas as nações, cercada por montanhas verdes, onde se veem habitações encantadoras" e "assistimos ao espetáculo da natureza mais bela do mundo", em outros momentos ele vê o palácio do imperador como "uma verdadeira biboca, uma coisa mesquinha", acredita que o exército brasileiro "não passa de algo cômico" e vê as igrejas do país como "de mau gosto" em relação às catedrais francesas.
Alecsandra Matias, autora do prefácio da obra e professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Universidade de São Paulo, vê essa comparação como fundamental para a formação de Manet. "Portinari, Tarsila e outros pintores começam a retratar o Brasil apenas quando saem do país, porque é quando esse processo de comparação mais acontece", diz.
"Manet está descobrindo um novo mundo e comparando com o que ele conhece, então, quando ele descreve, sentimos esse embate. Quem já viajou para uma realidade muito distante da sua passa por esse processo, e é curioso ver o Manet tendo sensações parecidas com as nossas quando viajamos."
O real impacto da experiência brasileira na obra de Manet ainda é objeto de debate. Matias lembra, em seu prefácio, que a biógrafa Beth Archer Brombert relaciona a técnica do brilho sobre a água, presente nas telas do pintor, à luz dos trópicos.
Já o crítico Antônio Bento defendeu que a personagem representada no quadro "Olympia" (1863) era carioca. "Para um jovem que pensava em se tornar marinheiro, estava desvinculado da família, é uma viagem para repensar sua trajetória", diz Matias.
"Tanto que, quando ele volta, pouco tempo depois há a adesão à pintura. Então realmente é um marco divisor. Vários artistas já tiveram esse encontro. Lasar Segall, quando vem ao Brasil e sente a luz dos trópicos, enlouquece."
Já para Martinez a viagem não influenciou de forma tão direta a obra que Manet desenvolveria. "Ele não descobriu as cores, tampouco a luz, em terras brasileiras. Foi muito diferente das viagens que fez depois de ter se tornado artista, quando esteve em países europeus como Espanha, Holanda e Itália, onde buscou inspiração nas obras de Diego Velázquez, Frans Hals e Lorenzo Lotto."
Segundo Martinez, o senso crítico do jovem prevalecerá e será direcionado à França em suas principais telas. "Ele não enxergava o Brasil como um lugar exótico, mas aplicava ao país um olhar semelhante ao que aplicou à sociedade francesa quando se tornou pintor", diz.
Independente do quanto o Brasil foi determinante para a estética de Manet, o pintor se tornaria uma espécie de elo entre a tradição pictórica ocidental e a modernidade depois de conhecer o Rio de Janeiro.
Ao subverter valores estabelecidos pela pintura acadêmica e escandalizar nos salões parisienses com obras como "Almoço sobre a Relva" e "Olympia", Manet alterou a postura dominante entre os artistas de seu tempo, que passou a ser de ruptura -e não mais de conformidade- com a tradição.
MANET NO RIO
Preço R$ 98,00 (96 págs.)
Autoria Édouard Manet
Editora Ercolano
Tradução Régis Mikail