Artista que morava nas ruas abre mostra feita de sucatas em museu do Rio de Janeiro

Por ALÉXIA SOUSA

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - "Como posso ser artista se vivo dessa maneira: sujo, sem comer e sem direção?". Marcelo Conceição, 57, passou mais de uma década questionando se o título poderia lhe caber: um homem negro, em situação de rua, vindo da periferia, sem alto grau de escolaridade, catador.

Hoje, para além de seu sustento, as obras que produz o levaram à cidadania e ao reconhecimento de seu talento. Depois de passar 11 anos vivendo nas ruas e avenidas do centro do Rio de Janeiro, o escultor celebra sua primeira exposição individual em um museu da cidade.

"Me incomodava quando me chamavam de artista porque eu achava que a arte tinha que ter um lugar especial. Foi ela que me regeu até aqui e isso é muito forte. Acredito que meu trabalho agora pode abrir caminhos para muita gente", disse Conceição.

Intitulada "Deslocamentos e Travessias", a mostra com mais de cem peças inaugurou no último dia 18 na nova galeria do Museu do Pontal, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. A estreia faz parte das comemorações da instituição para o mês que celebra o Dia da Consciência Negra.

A exposição gratuita, que fica em cartaz até março, conta ainda com textos e vídeos, em que o artista fala sobre sua trajetória, os processos de criação e a importância da arte em sua vida.

Foi na rua que Marcelo Conceição descobriu o que chama de dom. Com olhar atento e criativo construiu suas peças a partir da observação e da vivência da rua.

Em um pequeno tapete vermelho, ele expunha as sucatas à venda nos arredores da feira de antiguidades da praça Quinze, no centro, ou nas calçadas de São Cristóvão, na zona norte.

Até que um caixote transformou o garimpeiro urbano em escultor. Com pedaços de madeira descartados, Conceição fez um oratório que chamou atenção de uma mulher próximo ao largo da Carioca, no centro, onde ele costumava dormir. Ela comprou a peça e voltou querendo mais.

A partir daí, o catador identificou sua paixão e entendeu o propósito que buscava quando decidiu, por opção, viver nas ruas.

Integrante de uma família com 11 filhos, Conceição morava no Morro do Bumba, em Niterói, quando um deslizamento de terra soterrou a casa de familiares e matou um irmão, sobrinhos e amigos.

"Eu não tinha nenhum vício, nem nada. Saí porque eu quis. Sei que não é normal, mas tinha algo que pulsava em mim. Fui levado até a rua e não foi fácil. Saí de uma tragédia e fui para outra", afirmou.

Com a renda de suas criações, o artista vive atualmente em um apartamento alugado em Niterói, e suas obras estão em diversas coleções. São mais de quatro mil peças espalhadas entre galerias e colecionadores.

Como vende tudo o que confecciona, as obras que vão para as mostras são de colecionadores e galeristas que as adquiriram e as emprestam para os eventos.

"A arte não tem descrição. A arte é livre e infinita. A obra pode até sumir, mas o conceito dela fica e atravessa tudo", disse o escultor que rompeu paradigmas também por não saber ler nem escrever.

Aos 57 anos, Marcelo Conceição afirma que não lembra mais do que estudou até a segunda série do ensino fundamental.

"A pessoa vai para a faculdade para o dom se engrandecer dentro dela com ajuda das informações, dos livros, dos professores. Tem gente que já nasce com o dom completo. Mas é preciso afirmar para si mesmo o que quer. Não é só uma questão de escolha, de vontade ou qualificação. Eu acredito que aquilo que está destinado a você vai te encontrar", afirmou.

Há quem compare as obras de Marcelo Conceição com a de outros artistas, mas ele afirma que não tem referências no mundo da arte. A inspiração, segundo ele, está nos materiais que recolhe nas ruas.

"Eu fiz Belas Artes, mestrado, doutorado, mais de dez anos de História da Arte e nunca vi nada igual. É surpreendente como a obra do Marcelo é tão independente, original, geométrica, com uma estrutura organizada e coerente àquilo que ele é. São peças que nos instigam", disse a diretora artística do Museu do Pontal Angela Mascelani.

"O mais instigante é de onde ele tira as ideias, porque o Marcelo nunca havia entrado num museu, por exemplo. A primeira vez foi para expor seu trabalho", afirmou o cenógrafo Jorge Mendes, curador da exposição.

Ele conheceu Conceição há cerca de seis anos em uma feira, e explica que as peças contam diferentes etapas da trajetória do artista, muito marcadas pelo uso de diversos tipos de material. As obras são confeccionadas com materiais recicláveis, como madeira, papel, rolha, bambu e ferro.

"A força dele se relaciona ainda com esse momento que estamos vivendo, em que pensamos no excesso de consumo e no descartável", disse o cenógrafo.

A exposição no Museu do Pontal é a quarta participação do artista em mostras, mas a primeira grande individual.

"Essa é a nossa segunda exposição individual, apenas. Não à toa com o Marcelo, um artista que mesmo diante de uma trajetória de vida tão difícil, constituiu um repertório de obras com uma expressão artística tão singular e potente, que se abrem a múltiplas interpretações", afirmou o diretor-executivo, Lucas Van de Beuque.

O colecionador Paulo Tavares, responsável pela Galeria Imaginária, loja de arte popular do museu, também fala sobre como a obra de Conceição impressiona. "Ele constrói esculturas abstratas com muita facilidade e de forma muito bem feita. A arte popular costuma ser muito figurativa, mas o Marcelo não é isso. Sua obra é um ponto fora da curva", disse.

Durante o período de exposição da mostra, algumas peças estarão também à venda na galeria.

DESLOCAMENTOS E TRAVESSIAS

Quando Qui. a dom., das 10h às 17h30

Onde Museu do Pontal - av. Célia Ribeiro da Silva Mendes, 3300, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (RJ)

Preço Grátis