Calendário da Pirelli evoca afrofuturismo de Wakanda com fotos de Angela Bassett
LONDRES, INGLATERRA (FOLHAPRESS) - "Foi uma sensação elétrica, uma vibração." Angela Bassett, de tailleur amarelo faiscante e gravata preta, conta o que sentiu ao posar para o mais novo fotógrafo-sensação, Prince Gyasi. Falando baixinho, num hotel em Mayfair, no coração de Londres, a atriz conta que não foi muito diferente de quando encarnou no cinema a rainha Ramonda, de "Pantera Negra".
"Estava ali como ela, vestida daquele jeito. Quando eu visto algo, sou eu quem visto, não é aquela peça que me veste", diz Bassett. "Então minha voz não fica pequena diante daquilo. Encarei como encaro todas as minhas performances, que são minha forma de protesto."
O ali, no caso, era o set do novo calendário Pirelli, lançado no mundo todo agora. A tal peça era um naked dress de trama reluzente, com ares de realeza, Bassett empunhando uma enorme chave dourada, como aquela que abre as portas para uma nova geração de artistas negros passar adiante, daí o protesto.
Quem arquitetou toda a cena ancorada firme na vibe afrofuturista de Wakanda é o primeiro fotógrafo nascido na África a fotografar uma edição do tradicional calendário da borracharia mais famosa do planeta, hoje muito distante do que se entende por garotas nuas e insinuantes para aliviar o esforço braçal de quem troca pneus.
O ganês Prince Gyasi, que se tornou queridinho do mundo da moda depois de surgir com visões lisérgicas de sua Acra natal nas redes sociais, fotografou personalidades como Bassett, a poeta americana Amanda Gorman, famosa por recitar na posse do presidente Joe Biden, o ator Idris Elba e o cineasta britânico Jeymes Samuel, além da top model Naomi Campbell, para o que o gigante automobilístico entende como a edição mais disruptiva, para usar outro termo da moda, de seu calendário.
Essa folhinha nascida há quase 60 anos como brinde promocional da marca para os clientes do Reino Unido se tornou, ao longo das décadas, espécie de registro anual do momento fashion. No passar do tempo, refletindo mudanças sociais e o impacto de movimentos como o MeToo e o Black Lives Matter, saíram de cena as modelos provocantes sem roupa e entraram também homens, todos vestidos. Desta vez, todos são negros também.
O mundo habitado por eles nas páginas de janeiro a dezembro de 2024 é saturado de cores berrantes, cenários que lembram as composições cheias de relógios derretidos do surrealista Salvador Dalí, as cenas inconcebíveis de René Magritte, ou mesmo cenários de desenhos animados.
Teyana Taylor, a cantora americana, posa, por exemplo, diante de uma enorme casa na forma de um cogumelo, o cabelão esvoaçante congelado no ar, num cruzamento entre o Sonic dos videogames e uma Tempestade, dos X-Men.
Prince Gyasi, no entanto, não acha nada disso fora da realidade, assim como seus modelos. "Essas ideias todas vêm da vida real, não posso fingir", ele conta. "Foi como voltar à minha infância e resgatar personagens importantes para mim. Nada disso é fabricado. Essas cores são a vida. Quando ouço a palavra esperança, eu penso em cor-de-rosa."
Sua base conceitual para todos esses mundos fantásticos, aliás, não poderia ser mais surpreendente. O artista, agora mais um nome no grupo de gigantes como Richard Avedon, Mario Testino, Terry Richardson e Annie Leibovitz, que fizeram versões anteriores do calendário, diz se ancorar em artistas abstratos como Yves Klein e James Turrell para criar suas obras e também na narrativa de "O Velho e o Mar", clássico de Ernest Hemingway.
Klein foi o artista francês que criou um único tom de azul a atravessar todo o seu trabalho. O americano Turrell constrói ilusões abstratas só com o uso de luzes de cores sólidas, e Hemingway é dos mais secos dos escritores, autor de uma prosa dura, de períodos curtos e grossos.
No liquidificador de referências de Prince Gyasi, tudo isso de certa maneira se transforma na terra encantada dos Teletubbies ou num lugar em que as naves de Wakanda, e até mesmo a da Xuxa, pudessem aterrissar sem chamar muita atenção.
Kitsch ou não, vanguarda ou vítima da moda, sua visão reflete a complexidade de um mundo não binário, em chamas, que aos poucos vai se reinventando com a chegada de artistas jovens como ele, que ainda não fez 30 anos ?com a ajuda de um robusto orçamento de marketing, é verdade.
Um calendário que circulou pela primeira vez em 1964, fotografado por Robert Freeman, lendário retratista dos Beatles refletindo o espírito da Swinging London, agora volta a Londres numa era muito diferente.
É fato que já houve uma edição na década de 1980 só com modelos negros ?Naomi Campbell já aparecia naquela folhinha de 1987. Mas depois vieram muitas edições povoadas de beldades mais tradicionais, ou brancas, da indústria fashion, entre elas Cindy Crawford, Kate Moss e Gisele Bündchen.
Annie Leibovitz, uma das maiores retratistas da fotografia, tentou dar uma chacoalhada montando um casting mais diverso, só de mulheres, entre elas a tenista Serena Williams e a cantora Patti Smith, nomes pop, mas também a artista Yoko Ono e a mecenas Agnes Gund, que presidiu o MoMA, em Nova York
O calendário fotografado desta vez em Acra e Londres por Prince Gyasi agora não traz nenhum traço identificável dessas duas cidades, como se negasse a geografia, para estabelecer um plano menos preto e branco em que todos, na visão dele, seriam iguais.
É o que pensa Amanda Gorman, por exemplo, que vê a urgência da escrita numa terra arrasada. Quando declamou poemas na posse do atual inquilino da Casa Branca, a escritora parecia acreditar numa lavada de alma dos Estados Unidos contra a violência do governo Trump, mas agora afirma que o problema não acabou.
"Não é que seja mais difícil escrever agora, mas é algo mais urgente", ela diz, lembrando a sua cor favorita. "Vermelho me lembrava fogo e paixão. Sei que a moda diz coisas que não podemos dizer na poesia, por isso pensei em como poder expressar tudo isso com meu cabelo, com minhas roupas. Prince Gyasi tem um olho muito meticuloso e pensou em tudo isso também, em como dizer o máximo com o mínimo."
O jornalista viajou a convite da Pirelli