Curupira epifínica

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Curupira epif?nica
Daniela Aragão 2/01/2014

Curupira epifânica

"Basta olhar com teus olhos, Clarice/ Olhar que ninguém vê/ Como são claros os seus olhos/ Clarice!/ Claros de convencer/ Tão evidentes, manifestos, inequívocos/ Claros, Clarice ... mas distinto o seu caminho/ Saudades de você/ Só pra encontrar o seu mundo/ Clarice/ Procurei escrever. Disse me disse com seu nome/ oh Clarice/ Os claros bosques dos teus olhos/ e cabelos/Foi só olhar pros teus olhos Clarice".

Clarice Lispector com sua escrita labiríntica, densa, Joyceana, estranhamente tem ampliado a cada dia mais seu público. Cresce consideravelmente o número de publicações de suas obras no Brasil e no exterior, além do alargamento de um campo discursivo ao redor de sua criação que abrange teses e ensaios acadêmicos.

Que mistério tem Clarice? Talvez a resposta permaneça continuamente sob o fascínio do não desvelamento, como revela a belíssima canção de abertura do recém lançado cd "Clarice", da cantora e compositora Simone Guimarães. Clarice, composição da artista inspirada no enigma Clarice Lispector, inaugura a primeira faixa do disco homônimo. Primoroso da primeira a última nota, este álbum de quatorze músicas celebra a mais alta poesia em comunhão com o som. De ares jobinianos, Clarice se abre expandindo sua melodia composta por cordas, acrescidas de um transcendente naipe de flautas que evoca os mistérios clariceanos. A voz de Simone com sua assinatura única me impacta cada vez mais a cada audição. Seu timbre tão singularmente belo me transporta para os recônditos mais telúricos das Minas Gerais, um cantar de curupira, andorinha solta no espaço de um céu azul e matas verdejantes, pássaro solitário e absoluto, dono de asas imensas e plumosas que carrega em seu vôo clamores de Guimarães Rosa, Milton Nascimento, Drummond, Toninho Horta, Beto Guedes, Fernando Brant, Lô Borges e outros mais habitantes dessas esquinas tão profundamente pedregosas e inquietantemente acolhedoras.

Ouvir Simone Guimarães é por vezes comungar com uma solaridade explosiva, erótica, que retoma uma memória de tempos ternamente vividos na inocência e pureza da infância de sonhos infindos, como quer a elevada "Gira girassol": "E gira o girassol contorna o meu jardim/ Como um cristal a balançar sobre um cordão/ a vida quer girar em doidos girassóis/ vida a brilhar sobre o cristal dentro de nós". Cintila de intensidade luminosa sua voz embalada pela sequência de acordes cromáticos amarelo vida, amarelo flor margarida, amarelo Van Gogh pulsando de vida.

Entre tantas gravações de "Vera cruz" em versões letra e música ou somente instrumentais, Simone Guimarães arrebata com sua força de curupira trazendo Milton Nascimento sob a seiva de suas entranhas. Milton e Simone parecem vir do mesmo planeta barroco, almas irmãs em simbiose de plena elevação criativa e existencial. Leva-me as lágrimas ouvi-los no dueto de "Milagre dos peixes": "Telas falam colorido / de crianças coloridas..."

Esse legado mineiro, barroco, telúrico se imprime na voz e no modus vivendi das músicas dessa artista que parece possuir uma orquestra na cabeça, ou como em suas palavras doces e brincalhonas: "meu ouvido de cachorro". Afinada, precisa, visceral, seu cantar ganha em beleza e frescor verdejante com aroma de mato, na forma como ela tematiza a natureza sem pieguices, tal qual faz o maestro soberano Antônio Carlos Jobim. Os encartes de seus discos por si só reverenciam belezas das nossas matas, mares e rios. "Casa de Oceano", álbum anterior a "Clarice", é uma ode contemplativa inundada de epifanias lírico-sonoras que festejam a riqueza da natureza brasileira. Sua discografia já abrange dez discos solo "Cordas versos cordas", "Piracema", "Cirandeiro –Tiê musical"," "Aguapé", "Virada pra lua", "Chão de aquarela" "Casa de Oceano", "Cândidos", "flor de pão" e "Clarice", além de várias participações em álbuns de outros artistas da estatura de Milton Nascimento. Nota-se a primazia de uma ênfase nas questões ambientais em todos os discos.

Destaque para a bela aquarela brasileiríssima estampada na capa do encarte de "Clarice", construída pelo artista Milton Sobreiro. Simone sob a posse de seu violão e revestida das cores da bandeira, verde, amarelo e branco, é saudada pelo vôo de um beija flor. Puro lirismo plástico.

"Clarice" é sobretudo música e de altíssimo quilate, que traz como base a tríade Hollanda/Jobim/Caymmi. Entre os ilustres convidados que participam ora com suas vozes, ora com a execução de instrumentos, despontam Paulo Jobim, Miúcha, Ana de Hollanda, Danilo Caymmi, Novelli, André Mehmari, Leandro Braga e Thiago Penna da Costa. Como é bela a atuação de Paulo Jobim e Miúcha em Clarice, o primogênito de Tom traz na delicadeza de seu cantar ecos do legado do pai e da densidade cool de Chet Baker. Como é pulsante o contraste das vozes de Ana de Hollanda e Simone Guimarães em "Beija flor", a fragilidade aparente da voz pequena de Ana se casa harmonicamente em contraponto com a voz vulcânica de Simone.
"Estrela do mar", parceria entre Simone Guimarães e Carlos Di Jaguarão, dialoga com a herança praieira dos versos e sons Caymmianos. A leitura introspectiva estampada no canto grave de Danilo Caymmi, atinge uma espécie de harmonia celestial com o contracanto da curupira em leve e suave movimento de sereia. O arranjo de cordas e sopros de Ocelo Mendonça acrescido pela flauta em improviso de Danilo, contempla um instante de pura elevação. A força do poder das águas aliás é tema recorrente no repertório da cantora. "Água funda" é um mergulho de intensa beleza: "Eu venho da água funda/da água funda do rio/sou filha do peixe-estrela/e com seus olhos me guio/do cantar da Uiará/ no canto eu me desafio/meu coração é a cara/e os meus olhos dois rios". Ouvir Simone Guimarães é estar diante da música em sua mais plena grandiosidade composta de encanto, formosura, mistério, graciosidade, delizadeza, silêncio, lirismo, emoção, transcendência. Curupira, andorinha, sereia, Uiara, não foi à toa que essa menina- mulher se inspirou nos enigmas clariceanos. Ouvir Simone Guimarães é conectar- se com o elevado na mais pura epifania. Que todos os orixás a protejam sempre, salve, salve Curupira epifânica.


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.