Habita-me se em ti transito será lançado em Juiz de Fora
Entrevista com Guilherme Landim e Claudia Rangel sobre a realização do filme Habita-me se em ti transito
Claudia Rangel: Somos estudantes de comunicação e estávamos participando de um congresso no Rio que tematizava a questão das mídias locativas. São mídias móveis que podem se deslocar e acontecer em vários lugares. A pessoa pode assistir à cena por exemplo por celular, onde ela está acontecendo. Começamos a trabalhar inicialmente alguns conceitos como o espaço urbano e daí vem a população de rua como representante desse espaço.
Daniela Aragão: É um curta de quanto tempo?
Guilherme Landim: Aproximadamente 22 minutos, um curta no formato digital. Do projeto inicial até a concretização o trabalho foi ganhando forma e se modificando. Fomos pensando no início na viabilidade de se fazer um documentário sobre os moradores de rua que envolve várias questões como a segurança, os equipamentos e a própria abordagem a ser adotada com eles. Começamos a pesquisar todos esses aspectos. Fiz oficinas de cinema em Ouro Preto, Tiradentes e em outros locais, procurando desenvolver e amadurecer a ideia. Daí surgiu a oportunidade da Lei Murilo Mendes.
Claudia Rangel: Acabamos conhecendo o Rogério de Souza que é um assistente social e que já foi diretor do Albergue Municipal.
Guilherme Landim: Tínhamos uma proposta que foi mudando no decorrer das filmagens. É muita instabilidade, os próprios moradores de rua são muito instáveis. Precisávamos a princípio de alguém que fosse uma espécie de mediador no nosso diálogo com os moradores de rua.
Daniela Aragão: Juiz de Fora é o pano de fundo e também personagem. As locações foram pré-determinadas ou no fluir das filmagens vocês foram elegendo os cenários?
Claudia Rangel: Inicialmente tínhamos cinco pontos que seriam cinco praças. Praça da Estação, Praça São Mateus, Praça Antônio Carlos, Parque Halfeld e Praça do bairro Benfica. Quando partimos para o trabalho de campo efetivamente, conseguimos gravar as praças, mas constatamos que os moradores de rua não dormem nas praças, eles dormem nas imediações. Gravamos muitas imagens nas praças durante o dia, que era o horário que eles ficavam nelas.
Guilherme Landim: A escolha dessas praças acontece porque trabalhamos também a temática. Naqueles locais há uma necessidade que impera, um fluxo de pessoas que vai gerar dinheiro para os moradores de rua. Na Praça da Estação há muitos botequins e bares próximos, padarias que são frequentadas por eles também. O João pega sempre coisas num verdurão por ali. Em São Mateus também há muitos restaurantes. Em síntese, são lugares centrais com um fluxo grande de pessoas para o "mangueio" deles, ou seja, para pedirem dinheiro. São locais também onde eles tem cobertura, uma certa proteção dos moradores. Os vizinhos conhecem. E a partir desse mapeamento fomos também identificando o que era mais frequente em cada lugar. Há a geografia da droga, a parte baixa da cidade representada pela Praça da Estação tem o predomínio do crack.
Claudia Rangel: Na região da linha do trem tem muitos usuários de crack e fomos sabendo no decorrer das filmagens de muitas histórias.
Guilherme Landim: Daí vem esse título que escolhemos "transito", pois além deles transitarem, nós também fazemos esse percurso juntamente com eles. Andamos com a Luzia, ela nos levou até sua "casa". Fomos com a Bianca também.
Daniela Aragão: Vocês me disseram em off que ainda guardam um material bruto riquíssimo que possibilitaria outros filmes e com abordagens distintas. Pelo que entendi vocês entrevistaram um grande número de moradores de rua até fazerem a edição final. Quantos são os moradores que participam do filme editado?
Claudia Rangel: São 30 horas de material compiladas em 22 minutos. Ficamos com dez entrevistados.
Daniela Aragão: É notável como na edição vocês privilegiam uma espécie de narrativa que se organiza pela continuidade discursiva. Um morador reitera a fala do outro e sucessivamente. Me tocou fortemente a lucidez do discurso deles.
Claudia Rangel: Eles são lúcidos e foram muito abertos com a gente. Conseguimos com muitos uma intimidade de chegar, chamar pelo nome. Acho que esse foi um ponto forte, a proximidade com eles. E a montagem dá esse caráter mais lúcido.
Guilherme Ladim: Você tem pouco tempo para construir a narrativa.
Daniela Aragão: Quanto tempo vocês levaram entre a filmagem e o contato com os moradores?
Claudia Rangel: Foram dois meses de gravação.
Daniela Aragão: Houve então um exercício de interação com eles até possibilitar certo conforto deles diante da câmera. Não seria?
Claudia Rangel: A questão da linguagem é importante, buscamos trabalhar uma linguagem bem coloquial que não os deixasse inibidos.
Guilherme Landim: Nessa questão da abordagem, da pesquisa, até identifiquei um fator interessante juntamente com a Claudia. O IBGE não considera a população de rua, então um dos motivos de fazermos essa documentação é dar uma certa "existência" aos moradores de rua. Eles não tem residência fixa e em geral nem documento. Vimos essa necessidade de apresentar ao público essa realidade deles. Com relação a favorecer a espontaneidade dos moradores de rua em suas falas, fomos muito cuidadosos no processo de filmagem que vai desde a técnica que envolve equipamento de som e outros recursos. Pretendíamos manter a qualidade, mas sem invadir o cotidiano dos moradores de rua. Não chegávamos impondo nada, o filme é muito gratuito, deixávamos que eles falassem apenas. Nossa proposta foi ouvir.
Daniela Aragão: Eles são os condutores da narrativa.
Guilherme Landim: Eles querem muito ser ouvidos, pois não são ouvidos no cotidiano.
Claudia Rangel: Vale notar a diferença também em relação a uma abordagem jornalística. Por mais que tivéssemos um roteiro básico com algumas perguntas fundamentais, nós não nos prendíamos. Costumávamos apenas pontuar e deixá-los falando.
Daniela Aragão: O filme se inicia com uma frase impactante "A cidade é uma ilusão". São seres quase invisíveis dentro de uma atmosfera veloz, embrutecida. Acho que o ponto alto do filme é destacar o lirismo que submerge entre tantas opressões.
Claudia Rangel: Alguns deles até nos falaram, "a gente não é invisível, a gente é visível e incomoda".
Daniela Aragão: É relativo, eles incomodam e ao mesmo tempo são invisíveis, quando as pessoas não desejam vê-los ou ajudá-los. Quando eles sujam os cenários urbanos são altamente visíveis por exemplo.
Claudia Rangel: As pessoas às vezes ajudam justamente para não serem incomodadas.
Daniela Aragão: Sobre a questão da sonorização vocês contaram com um apoio consistente no percurso pela cidade, pois tiveram a presença do músico Big Charles. Ele auxiliou vocês não somente na captação de som, mas também na proximidade com os habitantes de rua, visto que vocês são muito jovens e o Big é um voyeur que conhece a cidade em seus distintos e surpreendentes recônditos. Penso também como vocês entraram num acordo de conciliação de imaginários e perspectivas, visto que Guilherme tinha inevitavelmente uma ideia de filme, Cláudia outra e por si só Big Charles outra.
Claudia Rangel: Sempre tivemos uma relação de trabalho muito boa e consenso. O Big a princípio iria fazer somente a trilha sonora, mas depois precisamos de alguém que fizesse a captação de som e que não fosse "careta". O Big caiu perfeito. O Big é um artista despojado e nós também procuramos ser despojados até na nossa roupa.
Guilherme Landim: Tudo para que não delimitasse nenhuma posição hierárquica. Estávamos sempre numa relação muito próxima. Acho que o Big entra mesmo em off com a própria imagem dele. Tem gente que vê fotos do Big e pergunta se ele é um morador de rua, na verdade o Big é um personagem.
Daniela Aragão: Com certeza, uma figura meio chapliniana até (risos)
Guilherme Landim: Big foi fundamental até na desenvoltura da linguagem, ele sabe entrar em todas as brechas. Nós queríamos estar desprendidos de uma linguagem acadêmica.
Daniela Aragão: O Big foi uma espécie de arregimentador.
Claudia Rangel: Certamente. Imagine se entrássemos com uma equipe de dez pessoas e que fossem preconceituosas ou algo do tipo.
Guilherme Landim: Os moradores de rua são muito observadores, percebem tudo. Nós estamos observando eles, mas eles também nos observavam o tempo todo.
Claudia Rangel: Não temos acima de tudo uma visão de piedade, como se fossem coitados. Muitos são espertos.
Daniela Aragão: Como um deles diz "um olho aberto outro fechado". Eles obrigatoriamente tem que desenvolver uma agilidade, uma perspicácia para se manterem vivos na rua.
Claudia Rangel: Eles falam "a gente não vive, a gente sobrevive".
Daniela Aragão: Há um instinto de preservação que percorre a conduta de todos os entrevistados. Isso é marcado por exemplo no momento em que um cria suas próprias estratégias para fazer suas necessidades fisiológicas num papelão, escondido. A Luzia que faz as unhas e pinta os cabelos.
Guilherme Landim: É verdade. Não colocamos na montagem, mas a Bianca fala por exemplo que quando entra numa farmácia está num salão de beleza. E ela vive disso, da imagem, pois se prostitui. Sobre essa questão da sobrevivência tentamos mostrar no filme que aquela situação de rua é uma outra forma de vida. Como nós temos uma casa, eles também estruturam à maneira deles suas casas que ficam expostas nas ruas.
Daniela Aragão: Isso é muito claro por exemplo entre dois amigos moradores de rua retratados por vocês, eles mostram as divisórias da "casa"inclusive.
Claudia Rangel: Quando fomos para a rua para vê-los e ouvi-los acabamos desconstruindo o ideal da casa enquanto única forma desejável de se viver. Eles mostram que não há exclusivamente esse desejo movendo-os. Eles arranjam outros meios, outros ideais.
Guilherme Landim: É outro ideal de vida, outra situação. Eles querem considerar essa condição ou situação de rua como transitória, pois acreditam ser um período breve.
Daniela Aragão: Nos centramos mais no conteúdo do filme e deixamos um pouco a reflexão aqui sobre a questão mais técnica e os princípios estéticos privilegiados por vocês na feitura do filme. Agrada-me a utilização da luz em contrastes de claro e escuro em algumas partes. Quais são os cineastas que mais influenciam vocês?
Guilherme Landim: No campo documentário me inspiro nos trabalhos de Jean Rouch, em sua forma política e social de ver o cinema, também no cinema de busca de Agnès Varda e na oralidade da filmografia de Eduardo Coutinho. Quanto à fotografia, me encanta o trabalho do diretor de fotografia brasileiro Mauro Pinheiro Júnior, me interesso também pela cinematografia de alguns diretores brasileiros contemporâneos como Marcelo Gomes, Karim Aïnouz e Cao Guimaraes. Me encanta a forma minuciosa e plástica da estética narrativa dos filmes do diretor juizforano Marcos Pimentel, trabalho que conheci recentemente, o qual vejo um cinema consistente. De forma geral, por motivos diversos, aprecio diretores como Wim Wenders, Michael Haneke, Ingmar Bergman, Andrei Tarkovsky, Stanley Kubrick, Alfred Hitchcock, Federico Fellini, Pedro Almodóvar e outros.
Claudia Rangel: Meus diretores preferidos são: Andrew Tarkovsky, Ingmar Bergman, Wim Wenders, Carlos Saura, Béla Tarr, Michel Haneke, Pier Paolo Pasolini, Ettore Scola, Eduardo Coutinho, João Moreira Salles. Diretores que de certa forma influenciaram meu trajeto profissional por suas propostas autorais e pela consistência narrativa.
Daniela Aragão: Vê-se que vocês trazem influencias de cineastas que primam pela qualidade estética sobretudo. Obrigada pela ótima entrevista e aguardo poder rever este filme exibido para os próprios entrevistados que aguardam avidamente. Sucesso para vocês!
Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.