Entrevista com o professor e artista pl?stico Afonso Rodrigues
Entrevista com o professor e artista plástico Afonso Rodrigues
Afonso Rodrigues: Meu pai era designer gráfico, um termo que se utiliza na atualidade. Ele era dono de uma gráfica. Eu o via desenhando muito em casa e minha mãe era professora de música. Eu participava desses dois universos de forma muito intensa. A minha educação cultural foi muito grande, estudei piano nove anos, mas não toquei isso para frente. Quando entrei para o conservatório não consegui levar adiante, pois era um estudo muito formal. A informação visual era muito grande, não só devido a questão da gráfica de meu pai, mas também a parte de história em quadrinhos. No meu período de infância a história em quadrinhos era algo marginal, embora tivessem muitas lá em casa, milhares na verdade em virtude de papai ser dono de banca de jornal. Foi ali que entrou um princípio de educação visual e de leitura, eu lia muita história em quadrinhos que eram adaptações de textos literários. Tempos depois não resisti ao apelo da formatação do estudo acadêmico. Na época ou você era médico ou engenheiro, acabei então fazendo engenharia. Estudei um ano e meio de engenharia, mas vi que aquele não seria o meu caminho. Fui então fazer artes plásticas e ampliou muito o meu universo para as artes visuais como um todo, sou bastante polivalente neste sentido. Gosto de pintura, escultura, cinema, história em quadrinhos. Atualmente tenho uma atração muito grande por produção de periferia, um rótulo que abarca uma diversidade de coisas.
Daniela Aragão: Você foi para o curso de artes pensando nas artes plásticas?
Afonso Rodrigues: Não, eu queria ser professor de educação artística. Quando me formei não tinha perspectiva de trabalho nenhuma. Na minha noite de formatura estava literalmente desempregado. Dois meses depois abriu concurso para professor da universidade, fiz e passei. Então nem tive a crise do desemprego, pois fui direto para a universidade, finquei o pé e acho que lá ainda estou.
Daniela Aragão: Você apresenta uma multiplicidade de percepções e apreciações artísticas e estéticas.
Afonso Rodrigues: Bastante. Sem pesar a mão em auto-referências, uma época fui convidado para escrever num blog de cultura. Recordo-me de que era um blog em que você não tinha um assunto específico para tratar. Chegava material para o pessoal que gerenciava o blog e perguntavam a cada um se queria escrever sobre tal livro ou tal cd, ou tal história em quadrinhos. Pegávamos o que queríamos e fazíamos. Ali produzi quase uns trezentos textos sobre tudo, cinema, quadrinhos. Esse blog foi muito premiado e acontecia num esquema alternativo como a maioria deles. Como era um projeto acadêmico que começou dentro da universidade e ganhou autonomia, quando o gerenciador do blog casou o blog acabou (risos). Destaco isso só para dizer que essa mobilidade sempre foi a minha cara. Quem me conhece sabe. Numa época recebi uma crítica muito violenta em função de minha versatilidade, disseram que quem fala de tudo não fala de nada. Digo que a interdisciplinariedade jogou no chão esse conceito tão setorizado. Hoje podemos transitar.
Daniela Aragão: Na universidade quais os trabalhos que você destaca?
Afonso Rodrigues: Na universidade fiquei em sala de aula e depois comecei a atuar com produção cultural, curadoria de exposições. Falo que a contribuição mais portentosa da minha carreira acadêmica foi a criação do instituto para bacharelado e design. Compramos a ideia de pegar o curso de artes, que era um curso nanico dentro do departamento "Instituto de ciências exatas", com doze professores. Transformamos o pequeno instituto em bacharelados interdisciplinares. Enfrentamos resistência, descrença, mas fomos atrás e conseguimos. Isso que acontece hoje na universidade, com a existência do bacharelado interdisciplinar com habilitação em artes plásticas, música e cinema, foi uma ideia nossa. Atualmente o Instituto de Artes tem um prédio imenso com cinquenta e dois professores dando aula. Talvez essa seja de fato a minha grande contribuição nesse sentido, pois há um mix de duas funções, treinamento e qualificação profissional, acrescido ainda da multiplicação das possibilidades. É visível como cresceu a oferta no mercado de design e cinema em Juiz de Fora. O meio artístico de Juiz de Fora ganhou com a instalação de um pensamento e de uma formação específica em algumas áreas.
Daniela Aragão: Voltando a questão das artes plásticas mais especificamente, recordo-me de que aconteceu no MAM um evento em homenagem ao Arlindo Daibert. Fale um pouco de sua convivência com esse grande artista.
Afonso Rodrigues: Depois que me formei em Artes, comecei a dar aula na universidade de desenho técnico e artes. Dois anos depois ganhei uma bolsa para fazer especialização em restauração de obras de arte na UFMG. Lá foi que vi o que era uma escola de arte, pois em Juiz de Fora era um curso híbrido, tanto formava gente habilitada para o desenho técnico, quanto quem desejasse trabalhar com arte. La na UFMG tomei contato com uma escola de arte, tanto lidava com recuperação de obras, como frequentava ateliês. Nos intervalos da minha especialização ia para a faculdade e lá vi a possibilidade de ser artista plástico. Voltei de Belo Horizonte artista plástico. Fui tentar fazer em Juiz de Fora minha primeira exposição e consegui que na Reitoria aceitassem a proposta. Conheci o Arlindo Daibert e o admirava. Considerava-o um mestre na técnica, linguagem e tudo o mais. Me pediram na reitoria que eu escolhesse alguém para me apresentar, visto que eu não conhecia ninguém. Uma amiga em comum me apresentou para o Arlindo, encontrei-me com ele na total descontração e descompromisso e ele topou escrever um texto sobre mim. Fizemos posteriormente um ateliê juntos, eu, ele e Alfredo Souza Neto. Daí minha carreira de artista despontou a ponto de eu me mudar para São Paulo e residir lá por cinco anos. Arlindo foi meu grande amigo. Devo muito ao Arlindo a minha entrada no caminho das artes. Então a ideia da homenagem ao Arlindo partiu da Enilce Albergaria, que era outra amiga de Arlindo. Percebemos que não poderíamos deixar a data passar em branco. Com o acervo dos amigos fizemos a exposição que poderia ter sido algo doméstico e acabou repercutindo.
Daniela Aragão: Hoje um tema que está em voga é a "performance", que acabou sendo um dos direcionamentos da minha tese de doutorado defendida na área de letras da Puc-Rio. O seu novo trabalho relacionado à fotografia parece-me que está de certa maneira envolvido com a performance.
Affonso Henriques: Sempre fotografei. Tinha câmeras primitivíssimas, mas não prestava uma atenção muito grande na fotografia enquanto raciocínio, era uma atividade muito mecânica. Não era uma tecnologia estranha, meu pai passava filmes em casa, pois minha família era dona de cinema. Eu então era tão íntimo da fotografia que não pensava muito a respeito dela. Só vim a pensar quando entrei no mundo das artes. Já encontrei a fotografia desvinculada do universo do registro, ela já era uma parceira. Ela era um suporte de pensamento, já estava desvinculada do ato de retratar e fazer um registro puro e simples. Dei aula de fotografia durante muito tempo, aulas técnicas que ensinavam a fotografar. Depois comecei a migrar da tecnologia para a teoria. Então virei um estudioso da fotografia e vim a dar aula sobre teoria fotográfica. Costumava dar uma disciplina no IAD chamada "História da fotografia", em que fugia da questão cronológica. Contava a história de como o pensamento mudou com a fotografia, como ela serviu para implantar essa civilização que conhecemos hoje. Continuo fazedor de fotos, tenho um compromisso legal em relação a isso. Mas hoje penso mais a fotografia. A fotografia também é um jeito de pensar e costumo fazer curadorias de fotografias. Pego um fotógrafo ou assunto e monto uma proposta de exposição usando esses argumentos, como nesse caso o auto-retrato. Percebo pela atualidade do auto-retrato, do self, das pessoas estarem preocupadas em se retratarem.
Daniela Aragão: Como se deu a execução dessa proposta do auto-retrato?
Afonso Rodrigues: Todo ano sou convidado para fazer uma curadoria, ano passado quando terminou o "Foto13" pensei em falar sobre auto-retrato, mas não da forma como saiu. Em um ano fui sendo instigado pela percepção crescente da questão do auto-retrato descompromissado, do self, em que você bate uma foto sua do momento e publica numa rede social. Pensei, vamos voltar ao tempo em que o artista pensava em seu retrato. Fiz um self meu e coloquei no facebook explicando que estava fazendo uma curadoria sobre auto-retratos que fugissem do self. Aguardava que me retornassem com projetos pensados de si. Foram cento e dez pessoas interessadas a princípio. Ao longo de quatro meses alguns foram desistindo de enviar e ficaram sessenta e seis, que estão mostradas na exposição. Encontra-se de tudo, desde um retrato mais formal de si até algo mais caracterizado ou questionador de "quem sou eu". A exposição se chama "Olha pra mim", que marca essa necessidade de tornar público seu código visual, mesmo que seja pela fotografia. Me ame através da minha imagem, me reverencie através da minha imagem. Essa proposta possibilitou as pessoas fazerem criações de si muito interessantes. No dia da exposição eles trariam a própria foto já transformada em adesivo para colar na parede. De antemão já presumia que o tamanho da foto iria influenciar na disputa de egos, a pessoa por exemplo chegava aqui primeiramente com uma foto tamanho ofício para colar, mas quando via a do colega muito maior, voltava pra casa e ampliava a sua. Isso foi muito legal. É um jeito de você delimitar o seu território pessoal, o seu lugar no mundo. Eles queriam ocupar a galeria de uma forma muito interessante. A primeira foto que chegou foi de uma pessoa mandando um beijo, a segunda de um umbigo.
Daniela Aragão: Interessante que o auto-retrato não se ocupa só da face.
Afonso Rodrigues: Não. Tem gente que eliminou o rosto. A transparência está ali, a invisibilidade. Como conheço a história de cada um tenho até uma leitura mais ampla, mas não identifiquei ninguém, não há nomes nas fotos. Eu queria esse anonimato da rua, esse confronto diário. Ali você entra, vê as fotos de si, se relaciona com elas sem saber das histórias. Há casos ali que são até engraçados, quando a pessoa me contou em particular. Meu objetivo era de que o espectador participasse.
Daniela Aragão: Essa proliferação de imagens é cada vez mais frenética, descontrolada e às vezes até compulsiva. Hoje em dia é frequente notar que a pessoa fica mais preocupada em retratar do que apreender sensações e impressões na vivência real do instante.
Afonso Rodrigues: Com certeza. Tenho um amigo que quando viaja leva dez cartões de memória e volta com umas cinco mil fotos. Uma vez ele pediu para descarregar as fotos em meu computador, quando vi o tamanho do arquivo lhe perguntei se conseguia ver tudo e ele disse que não. Parei numa foto qualquer e perguntei onde era e ele não sabia dizer. Essa transferência que vai para a câmera a gente começa a apagar na mente. Quando comecei a perceber que isso também estava ocorrendo comigo, propus a mim mesmo fazer duas viagens sem câmera. Fui para a Grécia e Istambul sem câmera, confesso que no meio da viagem arrependi. No entanto as memórias que conservo dessa viagem são as mais vivas que tenho, pois guardo comigo. Impregnadas em meu corpo pelos cheiros, sabores, sensações.
Daniela Aragão: Faz sentido aqui certa conexão com o vasto e inquietante pensamento do filósofo polonês Zigmund Bauman, de acordo com ele tudo se dilui e se liquefaz nessa perenidade que assola o nosso mundo. Você acha que é possível encontrar alguma solidez tratando-se de artes plásticas?
Afonso Rodrigues: Hoje tem artistas que contam com esse desaparecimento, conheço artistas plásticos que trabalham justamente com o efêmero. A transferência da memória para o arquivo, ele não quer que a obra dele seja registrada, a performance em muitos casos fez isso. O happening, os flash mobs que viravam relatos orais. Gosto de gente que trabalha com esse efêmero e que questiona essas posturas. Vi na França no instituto de fotografia de Paris a exposição de um brasileiro, dois trabalhos muito interessantes, num deles apareciam marmitas de operários de obra fotografadas por ele. O artista acreditava que havia um depoimento social naquilo e que a fotografia iria registrar algo que iria transitar numa outra área do cotidiano e que iria sumir. O discurso dele era não só a disponibilização do seu cotidiano, na exposição você se dilui e perde a posse de si. Ninguém é dono de nada, há um gerenciamento externo a você que influencia no seu modo de pensar. Talvez isso vá de encontro ao que você tão bem refletiu aí, o que seria hoje o tempo da arte? Durante muito tempo vigorou o colecionismo, depois a museologia transformou o arquivo da produção cultural em ítens que necessitam de uma perenização. Outro dia vi apagando nos pontos de ônibus de Juiz de Fora as obras dos grafiteiros, de repente a prefeitura manda pintar tudo de cinza.
Daniela Aragão: Exatamente o que fizeram com as criações do Gentileza no Rio de Janeiro.
Afonso Rodrigues: O trabalho desses grafiteiros não se tornou nem trabalho da Lei Murilo Mendes, infelizmente. Foi um trabalho que mexeu com a cidade e que subitamente foi destruído. A ideia da diluição talvez estivesse embutida na própria proposta. Hoje estamos convivendo com isso. Uma conterrânea minha faz esculturas em gelo e sua idéia é por na rua e deixar derreter. Não é vendável, consiste numa maneira de se atuar no questionamento do pensamento contemporâneo. É um outro tempo. As artes do tempo eram o cinema, a fotografia, os quadrinhos. A performance é uma arte do tempo, ele está ali e precisa acontecer para que o discurso se faça.
Daniela Aragão: E os novos projetos?
Afonso Rodrigues: Pretendo publicar minha tese de doutorado. Tenho um livro escrito sobre a história da fotografia de moda. Os demais projetos ainda mantenho em segredo.
Daniela Aragão: E essa "Olha pra mim" que está aqui na parede não vai transitar?
Afonso Rodrigues: Pois é Daniela, ela traz a marca da perenidade. Acaba aí mesmo. Futuramente acho que vai dar um samba essa história..
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.